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Vista parcial da cidade de Montes Claros


 

NOTAS DOS
COORDENADORES DA EDIÇÃO

A ordem de publicação dos trabalhos dos associados efetivos obedeceu à sequência alfabética dos nomes dos autores. Em seguida, foram ordenados os trabalhos dos associados correspondentes e convidados;

A Revista não se responsabiliza por conceitos e declarações expedidos em artigos publicados, nem por eventuais equívocos de linguagem nela contidos. A revisão dos originais foi feita pelos próprios autores dos artigos publicados.

FINS DO IHGMC

Art. 2º - O IHGMC tem como finalidade pesquisar, interpretar e divulgar fatos históricos, geográficos, etnográficos, arqueológicos, genealógicos e suas ciências e técnicas auxiliares, assim como fomentar a cultura, a defesa e a conservação do patrimônio histórico, artístico, cultural e ambiental do município de Montes Claros e região Norte de Minas.

Montes Claros
Minas Gerais - Brasil
2018


 

INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DE MONTES CLAROS

Sobrado de Dulce Sarmento
Rua Cel. Celestino, 140 - Centro - 39400-014 - Montes Claros/MG
(Corredor Cultural Padre Dudu)

REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO
E GEOGRÁFICO DE MONTES CLAROS

Publicação Semestral

Diretor e Editor
Dário Teixeira Cotrim

Conselho Editorial
Dário Teixeira Cotrim
Wanderlino Arruda
Sebastião Abiceu
João de Jesus Malveira

Editoração e Diagramação
Gráfica Editora Millennium Ltda.

Fotografias

Antônio Augusto Pereira Moura, Maria da Glória Caxito Mameluque, Manoel Freitas dos Reis, Maria Clara Lage Vieira, Marilene Veloso Tófolo, Cláudio Prates, Narciso Gonçalves Dias e Zélia Patrocínio Oliveira Seixas.

Impressão

Gráfica Editora Millennium Ltda.
ISBN: 978-85-67049-96-0


CAPA: Vista parcial da cidade de Montes Claros


SUMÁRIO

Diretoria 2018–2019 - 07
Associados Efetivos - 10
Associados Eméritos - 12
Associados Honorários - 12
Associados Correspondentes - 13
Homenagem a Associados Falecidos - 15

Apresentação - 17

Amelina Chaves
Coisas do Espírito - 21

Antônio Avilmar Souza
Prefácio para o “Dízimo” - 26

Antônio augusto Pereira Moura
Arquitetura da violência e sua influência no espaço urbano:
o caso de Montes Claros-MG - 28

Edvaldo de Aguiar Fróes
Um doloroso caso de infanticídio - 41

Jânio Marques Dias
Identidade e construção do espaço Norte Mineiro - 45

José Jarbas Oliveira Silva
O construtor da catedral metropolitana
Nossa Senhora Aparecida de Montes Claros - 52

Leonardo Álvares da Silva Campos
Antropofagia à moda de Salinas que virou crônica
de Machado de Assis - 54

Maria da Glória Caxito Mameluque
A história da APAC em Montes Claros - 68

Manoel Freitas dos Reis
Sertanejar, a caminha de Manoel Freitas - 76

Maria Clara Lage Vieira
D. Modesta - 78

Marilene Veloso Tófolo
Retalhos da Vida - 85

Narciso Gonçalves Dias
A assombração de Mané Corisco - 88

Wesley Soares Caldeira
Espiritismo: de Diamantina para Montes Claros - 92

Zélia Patrocínio Oliveira Seixas
Vida de Lourival Silveira, o Lô dos irmãos Patrocínio - 105


DIRETORIA DO INSTITUTO HISTÓRICO E
GEOGRÁFICO DE MONTES CLAROS


Fundado em 27 de dezembro de 2006.

COMISSÃO FUNDADORA 2006-2007

Dr. Dário Teixeira Cotrim
Dr. Haroldo Lívio de Oliveira
Jornalista Luís Ribeiro dos Santos
Dr. Wanderlino Arruda


DIRETORIA 2018-2019


PRESIDENTE DE HONRA Palmyra Santos Oliveira
PRESIDENTE Dário Teixeira Cotrim
1º VICE - PRESIDENTE Lázaro Francisco Sena
2º VICE - PRESIDENTE Sebastião Abiceu dos Santos Soares
DIRETOR-SECRETÁRIO Maria Aparecida Costa
DIRETOR-SECRETÁRIO ADJUNTO Maria da Glória Caxito Mameluque
DIRETOR DE FINANÇAS José Ferreira da Silva
DIRETOR DE FINANÇAS ADJUNTO José Jarbas Oliveira Silva
DIRETORA DE PROTOCOLO Wanderlino Arruda
Diretor de Comunicação Social Silvana Mameluque Mota
Diretor de Arquivo, Biblioteca e Museu Dorislene Alves Araújo

CONSELHO CONSULTIVO

Membros Efetivos
Maria de Lourdes Chaves
Terezinha Gomes Pires
Virgínia Abreu de Paula
Membros Suplentes
Magnus Dener Medeiros
Hélio Veloso de Morais
Maria Jacy de Oliveira Ribeiro

CONSELHO FISCAL

Membros Efetivos
Evaldo Jener de Fátima
Expedito Veloso Barbosa
Narciso Gonçalves Dias
Membros Suplentes
Américo Martins Filho
Antônio Augusto Pereira Moura
Roberto Carlos Moraes Santiago

COMISSÃO DE GEOGRAFIA E ECOLOGIA

Rita de Cássia Oliveira Bichara
José Ponciano Neto
Evany Cavalcante Brito Calábria
Maria Regina Barroca Peres
Vânia Rosália Veloso Assis Dias

COMISSÃO DE HISTÓRIA E ARQUEOLOGIA

Denilson Meireles Barbosa
Leonardo Álvares da Silva Campos
Clésio Kefren Paulino
Manoel Freitas Reis
César Henrique Queiroz Porto

COMISSÃO DE ANTROPOLOGIA,
ETNOGRAFIA E SOCIOLOGIA

Maria Ângela Figueiredo Braga
Hélio Antônio Maia
Jânio Marques Dias
Frederico Assis Martins
Eliane Maria Fernandes Ribeiro

COMISSÃO DE CLASSIFICAÇÃO E DE
ADMISSÃO DE SÓCIOS

Amelina Chaves
Marilene Veloso Tófolo
Juvenal Caldeira Durães
Zoraide Guerra David
Maria Lúcia Becattini Miranda

COMISSÃO DE DOCUMENTAÇÃO E PUBLICAÇÃO

Yury Vieira Tupinambá de Léllis Mendes
Ivana Ferrante Rebello e Almeida
Daniel Tupinambá Lélis
Maria Clara Vieira Lage

COMISSÃO DE VISITA E APOIO

João de Jesus Malveira - Coordenador
Edvaldo Aguiar Fróes
Ângela Martins Ferreira
Felicidade Maria do Patrocínio Oliveira
Harlen Soares Veloso
Alceu Augusto de Medeiros

COMISSÃO DE PROMOÇÕES E EVENTOS

Ana Valda Xavier Vasconcelos
Josecé Alves dos Santos
Teófilo de Azevedo Filho (Téo Azevedo)
Maria de Lourdes Chaves (Lola Chaves)
Augusta Clarice Guimarães Teixeira (Clarice Sarmento)
Mara Yanmar Narciso da Cruz


LISTA DE SÓCIOS EFETIVOS DO IHGMC

CD
Sócios
Patronos
01
Edvaldo de Aguiar Fróes Alpheu Gonçalves de Quadros
02
Milene A. Coutinho Maurício Alfredo de Souza Coutinho
03
Antônio Alvimar Souza Antônio Augusto Teixeira
04
Maria do Carmo Veloso Durães Antônio Augusto Veloso (Desemb.)
05
Dóris Araújo Antônio Ferreira de Oliveira
06
Marcos Fábio Martins Oliveira Antônio Gonçalves Chaves
07
Maria Aparecida Costa Antônio Gonçalves Figueira
08
Jânio Marques Dias Antônio Jorge
09
Narcíso Gonçalves Dias Antônio Lafetá Rebelo
10
Maria Florinda Ramos Pina Antônio Loureiro Ramos
11
Sebastião Abiceu dos Santos Soares Ary Oliveira
12
Antônio Augusto Pereira Moura Antônio Teixeira de Carvalho
13
Cesar Henrique Queiroz Porto Ângelo Soares Neto
14
Ana Valda Xavier Vasconcelos Arthur Jardim Castro Gomes
15
Magnus Denner Medeiros Ataliba Machado
16
Gilsa Florisbela Alcântara Athos Braga
17
Expedito Veloso Barbosa Auguste de Saint Hillaire
18
Frederico Assis Martins Brasiliano Braz
19
Paulo Hermano Soares Ribeiro Caio Mário Lafetá
20
Felicidade Maria do Patrocínio Oliveira Camilo Prates
21
Terezinha Gomes Pires Cândido Canela
22
Silvana Mameluque Mota Carlos Gomes da Mota
23
Hélio Veloso de Morais Carlos José Versiani
24
José Ponciano Neto Celestino Soares da Cruz
25
Pedro Borges Pimenta Júnior Corbiniano R Aquino
26
Harlen Soares Veloso Cyro dos Anjos
27
Regina Maria Barroca Peres Dalva Dias de Paula
28
Hélio Antônio Maia Darcy Ribeiro
29
VAGA Demóstenes Rockert
30
Maria Lúcia Becattini Miranda Dona Tirbutina
31
Clarice Sarmento Dulce Sarmento
32
José Catarino Rodrigues Edgar Martins Pereira
33
Wanderlino Arruda Enéas Mineiro de Souza
34
Geralda Magela de Sena e Souza Eva Bárbara Teixeira de Carvalho
35
Antônio Ferreira Cabral Ezequiel Pereira
36
Felicidade Vasconcelos Tupinambá Felicidade Perpétua Tupinambá
37
Evaldo Gener de Fátima Francisco Barbosa Cursino
38
Maria Inês Silveira Carlos Francisco Sá
39
VAGA Gentil Gonzaga
40
Maria da Glória Caxito Mameluque Georgino Jorge de Souza
41
Reinine Simões de Souza Geraldo Athayde
42
VAGA Geraldo Tito da Silveira
43
Benedito de Paula Said Godofredo Guedes
44
Roberto Carlos M. Santiago Heloisa V. dos Anjos Sarmento
45
VAGA Henrique Oliva Brasil
46
Eliane Maria F Ribeiro Herbert de Souza – Betinho
47
Amelina Fernandes Chaves Hermenegildo Chaves
48
Maria das Dores Antunes Câmara Hermes Augusto de Paula
49
José Ferreira da Silva Irmã Beata
50
Délio Pinheiro Neto Jair Oliveira
51
Evany Cavalcante Brito Calábria João Alencar Athayde
52
Ângela Martins Ferreira João Chaves
53
Vânia Rosália Veloso Assis Dias João Batista de Paula
54
Cláudio Ribeiro Prates João José Alves
55
Lázaro Francisco Sena João Luiz de Almeida
56
Ivana Ferrante Rebelo João Luiz Lafetá
57
Euprônio Costa Campos João Novaes Avelins
58
Maria Ângela Figueiredo Braga João Souto
59
VAGA João Vale Maurício
60
Manoel Messias Oliveira Jorge Tadeu Guimarães
61
Clésio Kefren Paulino José Alves de Macedo
62
José Jarbas Oliveira Silva José Esteves Rodrigues
63
VAGA José Gomes Machado
64
Palmyra Santos Oliveira José Gomes de Oliveira
65
Maria de Lourdes Chaves José Gonçalves de Ulhôa
66
VAGA José Lopes de Carvalho
67
Denilson Meireles José Monteiro Fonseca
68
Benjamim Ribeiro Sobrinho José Nunes Mourão
69
Rita de Cássia Oliveira Bichara José (Juca) Rodrigues Prates Júnior
70
VAGA José Tomaz Oliveira
71
Edwirges Teixeira de Freitas Júlio César de Melo Franco
72
Júnia Veloso Rebello Lazinho Pimenta
73
VAGA Lilia Câmara
74
Filomena Alencar Monteiro Prates Luiz Milton Prates
75
Alceu Augusto de Medeiros Manoel Ambrósio
76
Manoel Freitas Reis Manoel Esteves
77
Maria Jacy de Oliveira Ribeiro Mário Ribeiro da Silveira
78
Américo Martins Filho Mário Versiani Veloso
79
Valdecy Gouveia Rodrigues Mauro de Araújo Moreira
80
Vaga Miguel Braga
81
Juvenal Caldeira Durães Nathércio França
82
Josecé Alves dos Santos Nelson Viana
83
Daniel Oliva Tupinambá de Lélis Newton Caetano d’Angelis
84
Itamaury Telles de Oliveira Newton Prates
85
VAGA Armênio Veloso
86
Zoraide Guerra David Patrício Guerra
87
VAGA Pedro Martins de Sant’Anna
88
João de Jesus Malveira Plínio Ribeiro dos Santos
89
VAGA Robson Costa
90
Teófilo Azevedo Filho (Téo) Romeu Barcelos Costa
91
Wesley Caldeira Sebastião Sobreira Carvalho
92
VAGA Sebastião Tupinambá
93
Dário Teixeira Cotrim Simeão Ribeiro Pires
94
Luiz Pires Filho Teófilo Ribeiro Filho
95
Marilene Veloso Tófolo Terezinha Vasquez
96
Yure Vieira Tupinambá de Lelis Mendes Tobias Leal Tupinambá
97
Leonardo Alvares da Silva Campos Urbino Vianna
98
Mara Yanmar Narciso Virgilio Abreu de Paula
99
Virgínia Abreu de Paula Waldemar Versiani dos Anjos
100
Maria Clara Lage Vieira Wan-dick Dumont

---------------------------------

ASSOCIADOS EMÉRITOS

Petrônio Braz
Waldir Sena Batista

ASSOCIADOS HONORÁRIOS

Edilson Carlos Torquato
Irany Telles de Oliveira Antunes
Girleno Alencar Soares
João Carlos Rodrigues Oliveira
José Antônio Corrêa Mourão
José Emílio de Quadros
Luís Ribeiro dos Santos
Mardete Dias Silveira
Newton Carlos do Amaral Figueiredo
Pedro Ribeiro Neto
Raquel Veloso de Mendonça

Sócios Correspondentes

Adriano Souto - Belo Horizonte - MG
Alan José Alcântara Figueiredo - Macaúbas - BA
Alberto Sena Batista -Grão Mogol - MG
André Kohene - Caetité - BA
Armênio Graça Filho - Rio de Janeiro - RJ
Avay Miranda - Brasília - DF
Carlos Lindemberg Spínola Castro - Belo Horizonte - MG
Carmem Netto Victória - Belo Horizonte - MG
Cláudia Correia Costa - Carvalho Luz - MG
Cintia Bernes - Belo Horizonte - MG
Célia do Nascimento Coutinho - Belo Horizonte - MG
Daniel Antunes Júnior - Espinosa - MG
Dêniston Fernandes Diamantino - Januária - MG
Enock Sacramento - São Paulo - SP
Eustáquio Wagner Guimarães Gomes - Belo Horizonte - MG
Fernando Antônio Xavier Brandão - Belo Horizonte - MG
Flávio Henrique Ferreira Pinto - Belo Horizonte - MG
Genoveva Ruisdias - Belo Horizonte - MG
Hermano Baggio - Pirapora - MG
Honorato Ribeiro dos Santos - Carinhanha - BA
Jeremias Macário Vitória da - Conquista - BA
João Martins - Guanambi - BA
José Francisco Lima Ornelas - África do Sul
Jorge Ponciano Ribeiro - Brasília - DF
José Walter Pires - Brumado - BA
Manoel Hygino dos Santos - Belo Horizonte - MG
Maria do Carmo de Oliveira - Porteirinha - MG
Moisés Vieira Neto - Várzea da Palma - MG
Pedro Oliveira - Várzea da Palma - MG
Regina Almeida - Belo Horizonte - MG
Reynaldo Veloso Souto - Belo Horizonte - MG
Terezinha Teixeira Santos - Guanambi - BA
Wellington Caldeira Gomes - Belo Horizonte - MG
Zanoni Eustáquio Roque Neves - Belo Horizonte - MG
Zélia Patrocínio Oliveira Seixas - Aracajú - SE
Zilda de Souza Brandão (Bim) - Belo Horizonte - MG

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EPITÁFIO

Para um túmulo de amigo

“A morte vem de manso, em dia incerto e fecha os olhos
dos que têm mais sono...”
(Alphonsus de Guimaraens - ossa mea, I.)



Dário Teixeira Cotrim
Cadeira N. 93
Patrono: Simeão Ribeiro Pires

APRESENTAÇÃO

Meus prezados confrades e confreiras, eis aqui mais uma Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros. Já se vão mais de doze anos e com duas dezenas de volumes editados e outras publicações. Agora complementamos com muita alegria a elaboração deste volume, sempre num ambiente auspicioso, convidativo e compensador! Na verdade, tudo isso acontece em razão da credibilidade que oferecemos aos nossos associados.

Portanto, desde logo desejamos ressaltar que esta obra hoje impressa se deve ao engajamento dos associados, que sempre atenderam com igual presteza, aos apelos da Comissão de Documentação e Publicação, para a remessa de seus artigos em tempo hábil. Sendo assim, o IHGMC, mais do que nunca, se sente honrado em editar mais um precioso volume de sua influente revista. Doravante, já podemos dizer, sem exagero, da sua consagração, como causa e efeito, no resgate histórico de nossa querida cidade de Montes Claros.

Então, sob a égide dos ilustres colaboradores do IHGMC, dos quais nos parecem consentâneos os seus entendimentos para com os objetivos estatutários, editamos assim como se segue os textos em ordem alfabética: Amelina Chaves, Antônio Alvimar Souza, Antônio Augusto Pereira Moura, Dário Teixeira Cotrim, Edvaldo Aguiar Froes, Felicidade Maria do Patrocínio Oliveira, Halen Soares Veloso, Jânio Marques Dias, José Jarbas Oliveira Silva, Manoel Freitas Reis, Maria da Glória Caxito Mameluque, Maria Clara Lage Vieira, Marilene Veloso Tófolo, Milene Antonieta Coutinho Maurício, Wesley Soares Caldeira e Zélia Patrocínio Oliveira Seixas.

E como bem discorrem os autores, os artigos aqui publicados serão fonte de pesquisa séria, persistente e, acima de tudo, escorreita a exemplo dos volumes anteriores, o que despertará o maior interesse de quantos procuram conhecer melhor as nossas origens e as nossas tradições. Sendo assim, essas publicações revelam uma nova fase na história local e regional de nossa terra, graças aos conhecimentos adquiridos pelos nossos ilustres associados no decorrer do tempo.

De igual modo, concluímos estas breves considerações, cônscios de nossa responsabilidade, para agradecer a todos nesta caminhada nobre e gratificante e dizer ainda que estamos realizando com modéstia e coerência a grata missão de editar mais um volume da nossa imperativa Revista. Então, vamos agora à colheita munificente e compensadora de toda a história!




Amelina Chaves
Cadeira N. 47
Patrono: Hermenegildo Chaves

 

COISAS DO ESPÍRITO

Sinto na calada da noite os meus mortos desfilando pelos corredores da minha velha casa. Vejo-os como sombras leves e flutuantes. Eles protegem o meu sono e velam os meus dias. São testemunhas silenciosas do passado onde estiveram presentes participando de todo um processo de vida. Através do espirito estou sempre junto aos meus que se foram, e os trago para meu cotidiano por ser pessoas jamais esquecidas, pelos momentos marcantes de convivência, que permanece vivo na minha memória. De todos, ainda guardo na lembrança um perfume, que vez por outra o vento travesso faz chegar às minhas narinas, marcando presença, numa imposição pelo mundo misterioso chamado de “o outro lado da vida”.

Os mortos poderão voltar? E vagar entre nós? Como foi descrito no romance-novela “A Viagem”? Esta é uma dúvida que paira no ar sem uma resposta concreta. E as minhas visões? Serão elas criadas pela autossugestão? Que me leva a sentir os que foram bem perto de mim, ou sentados na sala de visita? Sinto um grande fascínio pelo mundo invisível dos espíritos. Assunto tão falado e discutido desde os primórdios da história em que a ciência ou a religião cheguem a uma exata e definitiva resposta para o intocável.

No meu questionamento, pergunto: Qual seria definição para os dons que algumas pessoas têm o privilégio de possuir? Seria uma reencarnação de que tanto falam? Por que no correr de nossas vidas encontramos pessoas altamente capacitadas, sem nenhuma condição de estudos, para ser grandes mestres, na música, ou na literatura, fato comum no mundo da arte. Existe uma infinidade de relatos sobre o mundo espiritual, muitos incrédulos duvidam, eu particularmente não afirmo, fico em dúvida, por ser fraco o meu conhecimento. A própria Bíblia, o livro dos livros, registra aparições, visões e sinhôs indescritíveis, fatos que desafiam a nossa imaginação.

Tudo que se refere as coisas do espirito torna para nós viventes um grande enigma, por mais sábios que tentamos ser, vivemos apenas de suposições diante de estórias fantasiosas. Desde a infância aprendemos a conhecer o relato falado do céu. Lá existe a balança de São Miguel, onde são pesados os nossos pecados. Também fala de uma ponte escorregadia que serve de passagem da terra para o céu, se passamos de sapato escorregamos e caímos no abismo. São Pedro é o chaveiro do Paraíso, fica na porta nos esperando com uma enorme chave na mão. E o trono do Pai Eterno? Feito de nuvens e estrelas, tanto brilho que ofusca as almas quando chega lá ele espera os pecadores para absolvição, ou uma condenação final. Pobre de nós!

E o inferno? Quem não conhece uma série de descrições sobre ele, os tridentes, a cama em brasa, onde os compadres que se tornam amantes vão deitar e o cão de sete cabeças que guarda as portas de entrada, e assim segue as invencionices sem conta, todas certamente inventadas pelo povo. Na minha infância estive muito ligada a estes casos imaginários.

O tempo passou, muita coisa mudou na cultura e crendice da minha época, mas eu ainda trago por hábito, nos fins de semana, buscar as pequenas vilas ou fazendas, locais que ainda conservam a simplicidade, que me leva de volta às minhas origens. Locais fascinantes pelo sossego que me oferece.

Enfim procuro refletir, descansar, fazer minhas orações, só assim me sinto mais perto do criador. Também sinto na natureza uma fonte de renovação. A paisagem desperta minha alma para a escrita, que fluem mais leve e solta as ideias mais propícias a expandir. Foi numa desta minha figa que algo extraordinário me aconteceu deixando no meu pensamento uma nova pergunta que jamais terei resposta: Seria possível dentro do mundo espiritual o espirito de pessoas que habitaram a China milenar aparecerem aqui no Brasil, ou mais, em Minas Gerais, numa pobre cidade do interior? Onde não existem as grandes fortalezas, nem misteriosas profecias, que leva o povo a sobreviver as grandes tragédias, dos terremotos e guerras, talvez porque são unificados pela fé e amor a terra onde nasceram? Não, pois não é o primeiro, posso afirmar.

Tudo aconteceu numa manhã de domingo na vizinha cidade de Engenheiro Navarro, ocasião em que fui passar o fim de semana na casa de amigos. Assim que cheguei, depois das formalidades naturais de quem chega, notei na sala uma velha estante e nela um amontoado de livros. Pedi licença e folheei alguns, ligo um deles me chamou a atenção pelo título: A Boa Terra. Autora Pearl S. Buck. Até então era desconhecida, peguei o livro me desculpei, todos já conheciam a minha mania de ler. Me isolei e comecei a ler (só para conhecer a autora), mas na medida que me aprofundava na leitura fui tomada pela narrativa fascinante, sentia como se algo misterioso me transportasse para o mundo chinês nos locais onde desenrolava a história. Tão absorta estava que ninguém ousava me incomodar. Esquecida de tudo em volta, mergulhei de corpo e alma, e passei a conviver com todo processo de vida de uma família pobre do velho mundo oriental. Inexplicável como me sentia presa àquelas páginas, tanto que passei caminhar com os personagens, Wang Lung e sua esposa Olan. Um casal de lavradores pobres, castigados pela seca, a mesma que assola o nordeste brasileiro. Lá, os campos imensos de arrozais e trigais estavam ressequidos, sofri com eles todas as agruras do chão árido.

Nada ali me importava. Sai do meu mundo real dois dias seguidos, levantava de um banco improvisado apenas para me alimentar e dormir. Mesmo assim o livro ia junto. Era como se estivesse sendo conduzido pela mão da escritora genial (Pearl S. Buck). Chegava a sentir sua presença ao meu lado, numa imposição de me levar até o final do seu livro. Erámos boas amigas, uma sensação que me dominava completamente numa obrigação de debulhar página por página do seu romance. Nada desviava minha caminhada literária,
a leitura me prendia a vez por outra a brisa leve tocava minha narina trazendo um perfume forte e desconhecido, o que me dava a certeza de que ele estava ao meu lado. Me via tomada de um certo delírio, então descansava o livro no meu colo e conversava com a autora, fazendo um paralelo dos costumes da velha China; principalmente, o que relacionava à mulher, como neste texto que segue, mostrando a luta do casal pela terra:

“O sol castigava-os, porque estava ainda no começo do verão. O rosto de O-lan inundou-se logo de suor. Wang Lung tinha o dorso nu, mas O-lan trabalhava com o ralo vestido, que lhe cobria os ombros, em breve estava empapado e colado a seu corpo como uma nova pele. Movendo-se ambos num perfeito ritmo, sem uma palavra, horas e mais horas. Sentiase ele unido àquela que compartilhava da fadiga do seu labor”

A Boa Terra – Título que nem chama muito atenção, mas os textos nos mostram toda uma grandeza de amor do homem pela terra. O que me fez lembrar e comparar com o significado povo nordestino, desprotegido até pelo Criador, que em algumas regiões manda a chuva e a opulência , em outras : a sequidão; no sofrimentos dos personagens pude vislumbrar muitas famílias que conhecem a aridez da terra, chegando a morrer nela grudados, ou vivendo movido apenas pela fé e esperança de dias melhores. Como cita a aurora neste excerto:

“Nunca venderei estas terras! Gritou para eles... Torrão a torrão; arrancarei para dá-la a comer a meus filhos, e quando morrerem, enterrálos-ei na terra, eu e minha mulher e meu pai, até mesmo ele, morreremos na terra que nos deu o berço...”

Pearl S. Buck, grande autora! Que tem o extraordinário segredo de prender o leitor a ponto de nos integrar em situações vividas pelos personagens centrais. O casal chinês chamado Wang Lung e O-lan.

Voltando as considerações iniciais, ai terminar a leitura do referido livro, uma dúvida ficou no ar, tomando por completo o meu pensamento: Será que um espirito que viveu tão longe, de uma cultura diversa da nossa, poderia estar ali junto me conduzindo para a leitura do livro? E mais, me prendendo por completo com suas ideias? Se não estava ali do meu lado, de onde vinha aquele exótico perfume que feria minhas narinas, todo instante que pegava o livro? Acreditem quem quiser, estou certa que fiz uma viagem pela China milenar, conduzida pelas mãos desta grande escritora, dona de textos lindos. Terminei a leitura com a certeza de que ela queria que eu fosse até o fim da narrativa.


Pearl S. Buck


A Boa Terra



Antônio Alvimar Souza
Cadeira N. 03
Patrono: Antônio Augusto Teixeira

PREFÁCIO PARA O “DÍZIMO”

Temos a grande alegria de apresentar o trabalho de José Ferreira da Silva. A apresentação constitui um momento importante para a leitura da obra, pois quem abre as primeiras páginas já encontra nelas as primeiras descrições generosas que podem nos animar no prosseguimento da leitura ou indicar sua desistência. O presente trabalho constitui um conjunto de reflexões que ajuda a Igreja em sua vida pastoral. Afinal, a pastoral torna-se grande campo de tensão na atualidade pela complexidade das inúmeras exigências e demandas de todos os setores da vida humana.

Neste trabalho em especial destacamos a valiosa contribuição para o entendimento da importância e finalidade que o dízimo tem no interior da vida eclesial. Já nas páginas iniciais destaca a preocupação de buscar a fundamentação nos padres da Igreja antiga. Valoriza-se a história da Igreja em sua magnitude e beleza. A história não é lembrada somente como algo do passado, mas como aquela que tem como objetivo cimentar o chão que pisamos no decorrer de nossa existência.

O tema do dízimo com certeza traz grandes dificuldades. A primeira se fundamenta na necessidade de compreensão da sua história e necessidade. Sempre pairou entre os católicos uma mentalidade de que a Igreja não necessita de suporte financeiro para suas atividades pastorais. O que na verdade não passa de um equívoco. Partilhamos o que temos. Não é diferente o que a Igreja faz no seu dia-a-dia quando nos convida a fazer este gesto generoso da partilha ao ofertar, não só, uma importância econômica mas o nosso próprio coração.

A segunda dificuldade se fundamenta em uma mentalidade assistencialista herdada pela pastoral emigratória que assentara em nossas terras. Durante séculos vários membros do clero vinham da Europa trazendo parte da fortuna de suas famílias e aqui distribuída entre os católicos desta terra. Tal postura contribuiu para que não aprendêssemos a contribuir com parte do que temos mas déssemos esmola para a sustentação da vida eclesial. Cabia aos mais ricos dispor de parte de sua fortuna para o sustento da Igreja e as esmolas dos mais pobres. Ainda hoje, caminhamos para o altar do ofertório de nossas missas cotidianas para colocar dez centavos na oferta de nossas celebrações.

O trabalho de Ferreira tem o mérito de ser uma reflexão de um cristão sensível com uma questão que incomoda muitos de nós. Falamos deste tema “a meia boca”. Temos medo da reação de quem vai escutar, medo de ser chamados de mercenários, amantes do dinheiro e financistas. Queremos nossas igrejas limpas, som de boa qualidade, bancos confortáveis e ornamentos pomposos. Para muitos a igreja deve ser um eterno campo de milagres espirituais e financeiros.

Que a comunidade receba com carinho e afeto o texto e o leve para as reflexões diárias. É um dever de cada cristão de bom coração e reta intenção contribuir para o crescimento da Igreja que amamos.



Antônio Augusto Pereira Moura
Cadeira N. 12
Patrono: Antônio Teixeira de Carvalho

ARQUITETURA DA VIOLÊNCIA E SUA INFLUÊNCIA NO ESPAÇO URBANO: O CASO DE MONTES CLAROS - MG

Resumo do Artigo Arquitetura da violência e sua influência no espaço urbano: O caso de Montes Claros/MG – escrito por Antonio Augusto Pereira Moura e Letícia Santos Borém para o ENANPARQ 2014 – São PAULO - disponível em http://www.anparq.org.br/dvd-enanparq-3/htm/Artigos/SC/POSTER/SC-CDR-032_MOURA_BOREM.pdf

Muitas mudanças acontecem no cotidiano da sociedade brasileira por conta do aumento da violência nas cidades. Esse crescimento na criminalidade e na violência, que é diariamente enfatizado pelas mídias, gera um grande medo, o que a faz querer buscar maneiras de se proteger em todos os lugares e a todo momento. Em consequência disso, a arquitetura e a paisagem urbana se transformam, gerando o termo arquitetura da violência ou arquitetura do medo (FERRAZ, 2005). Como arquitetura do medo, entende-se toda manifestação na arquitetura que está relacionada com esses novos arranjos sociais nas cidades provocados pela violência. Há uma “medievalização” da arquitetura contemporânea, que consiste no resgate de algumas características e valores da época medieval, introduzindo-as na arquitetura, tudo por consequência do pânico que assola os cidadãos. (FERRAZ, 2009)

A arquitetura da violência está ligada primeiramente à um contexto material de mudanças físicas na arquitetura como as grades, os muros, as cercas elétricas, as concertinas, porém, a concepção de arquitetura da violência aborda, principalmente, as relações desses métodos de proteção com a sociedade e explicita que há uma ligação direta entre a segregação social e a cultura da violência, fato que resulta na arquitetura da violência (TAVARES, 2012). Além disso, o termo arquitetura da violência possui uma certa dualidade nessa questão social. Assim como a arquitetura da violência quer proteger as pessoas do perigo e da violência, ela também acaba por provocar violência através da segregação social.

Outra questão a ser abordada é a forma como a chamada indústria do medo interfere na arquitetura da violência e nos efeitos da mesma. A indústria do medo é a indústria que vê na violência e no medo, a oportunidade de comercialização de espaços auto segregativos de segurança privada (MOREIRA, 2003). E é com influência dessa indústria do medo e também da mídia, que a sociedade sente medo e toma atitudes que englobam a arquitetura da violência para se protegerem. Esse trabalho ilustra, a partir de Montes Claros esse contexto.

Uma outra realidade que condiz com a arquitetura do medo, é a criação dos condomínios fechados. Estes são exemplos claros de como os sistemas de proteção contra a violência nas cidades vem trazendo segregação social na atualidade. Segundo Bauman (2009 apud NASCIMENTO et al, 2012) “O condomínio fechado surge como possibilidade de buscar proteção. Se as cidades são o lugar do perigo, os condomínios seriam uma forma de barrar esse perigo do mundo “lá fora” e se proteger das pessoas que habitam o mundo além muro”. Porém, essa situação traz uma segregação social muito grande, pois as relações interpessoais acabam se tornando muito superficiais, os contatos com o resto da sociedade são sempre bastante minimizados, portanto, quem opta por residir nos condomínios acabam deixando de participar do convívio social, das experiências coletivas, da vida e da cultura urbana no geral. (NASCIMENTO et al, 2012).

Os loteamentos fechados associados aos Shopping Centers, complexos de escritórios e outros ambientes com controle privado criam uma nova dinâmica espacial. Criam uma relação de distância e acabam por evitar a cidade. Andar nas ruas deixa de ser uma atividade normal e passa a ser evitada. As ruas deixam de ser espaços sociáveis como também deve ser evitada qualquer surpresa proporcionada relacionada a esta atividade.

Sobre a situação da criminalidade, em especial sobre os crimes cometidos contra o patrimônio, na cidade de Montes Claros, Gomes (2010) avaliou como esse tipo de crime se manifesta na cidade e mapeou em quais regiões tais crimes são mais frequentes. Segundo Beato e Reis apud Gomes (1998) “[...] as taxas de crimes, em especial delitos contra o patrimônio, têm apresentado maior crescimento em contextos onde o desenvolvimento social e econômico são evidentes”. E Montes Claros se encaixa nesse cenário de cidade em desenvolvimento social e principalmente econômico, sendo assim,
alvo do aumento da criminalidade, o que traz como consequência, o uso da arquitetura do medo.

O CASO DE MONTES CLAROS/MG

A cidade teve sua formação semelhante à formação das cidades coloniais brasileiras, em que famílias de melhor poder aquisitivo construíam suas grandes casas próximas à igreja na praça central, mas com o passar do tempo e o desenvolvimento do comércio, foram se abrindo novas ruas em uma malha reticulada tradicional, levando assim, o comércio a ocupar essa área central, e as residências foram se afastando do centro, para as áreas no entorno. (MOURA E PRATA, 2007)

O estudo de Corrêa (2000) sobre as características e o perfil de formação da cidade latino - americana destaca um esquema de organização espacial adaptado de Mertins e Bahr (1983). (Figura 01).


Figura 01: Esquema de organização espacial da cidade latino-americana

O esquema de Mertins e Bahr diferencia a cidade em núcleo central, zona periférica do centro, eixos industriais, subcentros regionais, bairros de alto status social, bairros de médio status social, bairros de baixo status social e favela. O processo de crescimento de Montes Claros e a caminhada das classes sociais mais abastadas para a periferia, os eixos de crescimento e setorização repetem o esquema apresentado.

O município, atualmente, possui um índice de criminalidade bem elevado, de acordo com dados fornecidos pela Secretária de Estado de Defesa Social de Minas Gerais. Em março de 2013, Montes Claros ocupava o 5º lugar no ranking mineiro de criminalidade e houve um aumento de 65% no número de crimes contra o patrimônio na cidade, se comparado com o ano de 2012. Algumas regiões de Montes Claros possuem índices mais altos de crimes contra o patrimônio e, consequentemente, em tais bairros pode-se notar uma maior modificação na arquitetura e na paisagem urbana por conta de tal fenômeno. Segundo Gomes (2010), o município de Montes Claros concentra o maior número de crimes contra o patrimônio em sua região central e bairros em seu entorno:

Já os crimes contra o patrimônio estão localizados na região central, bairros em seu entorno, bairros com características da região central, privilegiados pelo fenômeno da descentralização dos centros urbanos, onde é maior o fluxo de pessoas e capitais, ou naqueles em que o perfil socioeconômico é maior e que, em tese, dispõem de alvos para a prática de delitos. (GOMES, 2010)

Neste mesmo trabalho, Gomes (2010), catalogou quais são esses bairros da cidade de Montes Claros que concentram a maior quantidade de crimes contra o patrimônio (Figura 02).


Figura 02: Crimes contra o patrimônio nos bairros de Montes Claros/MG - Fonte: Gomes, 2010

É possível notar no cotidiano da cidade que, apesar de estar listada em primeiro lugar na tabela, a região central de Montes Claros já não mais possui índices tão altos de crimes contra o patrimônio, pelo fato de a vigilância com câmeras nas ruas centrais estar sendo feita de maneira mais efetiva, o que faz com que a criminalidade saia do centro e parta para bairros onde tal vigilância não acontece. Além disso, os crimes contra o patrimônio não estão mais concentrados apenas nas áreas de classes sociais altas, muitos bairros de classe média e baixa vivenciam esse tipo de crime em seu cotidiano e, consequentemente, também estão passando a aderir aos artifícios da arquitetura do medo em sua configuração arquitetônica e urbana.

Observou-se que grande parte da cidade e da arquitetura da mesma está sendo modificada dentro dessa perspectiva da arquitetura da violência. Foram escolhidos para análise visual, dois bairros que mostram essa realidade, um de classe mais alta (Todos os Santos) e outro de classe média (Edgar Pereira).

Bairros residenciais de classe alta como o Todos os Santos possuem índices altos de crimes contra o patrimônio, pois são muito visados pelo seu status. Nesse bairro é possível notar que a arquitetura do medo predomina em praticamente todas as residências, sendo utilizada de várias maneiras. Os moradores de tais bairros se sentem mais ameaçados por possuírem um patrimônio mais valioso e acabam optando por muros muito altos, concertinas, cercas elétricas e portões bem seguros. A paisagem do bairro está modificada em relação a alguns anos, quase todas as ruas se transformaram em extensos corredores ladeados pelos grandes paredões que protegem as casas.

Nas imagens a seguir pode-se verificar como uma residência no bairro Todos os Santos era no ano de 1996, com grades baixas, sendo possível visualizar toda a construção, e logo em seguida, como a arquitetura do medo a transformou nos dias atuais.

A casa acima (Figuras 03 e 04) se localiza na rua Santa Bernadete no Bairro Todos os Santos. Nas fotos antigas pode-se notar que a residência possuía apenas grades baixas de proteção. Já nos dias atuais, foi construído um muro envolvendo essas grades e foi colocada uma cerca elétrica em cima do muro, sendo nítida a mudança provocada pela arquitetura do medo.

Alguns outros estudos de casos sobre os efeitos da arquitetura da violência ao longo dos anos em residências de alto padrão também foram avaliados no município. Um deles foi em uma edificação no bairro Jardim São Luiz, que também constitui um bairro de classe alta da cidade de Montes Claros. As imagens a seguir (Figuras 05 e 06) mostram uma residência nesse bairro também no ano de 1996, apenas com grades baixas e nenhum artifício de proteção contra a violência. Já nas fotos atuais percebe-se a presença de cerca elétrica e também de concertinas no alto dessas grades.

Outro exemplo é uma residência na Avenida Mestra Fininha, na região central da cidade. A casa também é uma edificação dos anos de 1970 de alto padrão e teve mudanças consideráveis no âmbito da arquitetura do medo. Pode-se observar, através das imagens abaixo (Figuras 07 e 08), que a casa não possuía proteção quase alguma, simplesmente um muro muito baixo em sua fachada que servia apenas para delimitação da área do terreno. Hoje em dia, observa-se a presença de uma grade acima desse muro, e também cerca elétrica e concertina, mudando bastante a estética da fachada e escondendo a edificação.

O exemplo observado em que mais se notou a descaracterização da residência, foi o Secretariado Arquidiocesano de Pastoral na região central de Montes Claros. A edificação que antes possuía apenas uma pequena grade, deixando a vista toda a construção e o jardim, atualmente possui um muro bem alto com cerca elétrica, concertina e duas câmeras de vigilância viradas para a rua (Figuras 09 e 10).

As imagens a seguir (Figuras 11 e 12) têm a intenção de ilustrar como o aspecto urbano do bairro Todos os Santos também se enquadra nas características da arquitetura do medo. Em quase todas as ruas do bairro, nota-se um grande corredor formado pelos altos muros das casas, tal configuração acaba dando uma sensação de mais insegurança para quem transita por essas ruas, pois não há ligação quase alguma entre as residências e a rua e nem uma forma de contato rápido entre quem está dentro das edificações e quem está no espaço público. Tal fato só aumenta a segregação tanto de quem habita tais casas, quanto de quem frequenta e/ou passa por esses locais.

Já no bairro Edgar Pereira, a existência desse tipo de alteração na arquitetura das residências é mais recente, por se tratar de um bairro de classe média e também por ser um bairro mais novo, não tão tradicional quanto o Todos os Santos. Nota-se o uso de cercas elétricas, concertinas e muros altos sendo erguidos nas casas do bairro. Nas imagens abaixo (Figuras 13, e 14) pode-se vislumbrar exemplos de edificações nesse bairro que contam com a arquitetura do medo.


 

REFLEXÕES

A leitura que se faz da cidade de Montes Claros/MG é que os elementos identificados em grandes centros urbanos decorrentes do crescimento demográfico e do aumento da violência se repetem. Observa-se que a chamada arquitetura da violência está de fato crescendo e sendo cada vez mais utilizada na cidade. Com o crescimento da cidade, a violência foi, consequentemente, se alastrando e os crimes contra o patrimônio passaram a ser mais temidos pela população, levando-a a aumentar a segurança de suas residências por meio da arquitetura do medo.

Passa-se a questionar, portanto, como a arquitetura da violência tende a evoluir e quais impactos tais mudanças na arquitetura e nas cidades podem ocasionar. É fato constatado que este aumento da violência tem levado as pessoas a modificarem seus hábitos e buscarem novas formas de se proteger.

O crescimento dos loteamentos fechados, a busca por condomínios verticais e horizontais com mais segurança e controle, o esvaziamento de áreas centrais são reações a este aumento da violência somado a outras situações de comportamento. A quantidade de condomínios que vem sendo implantada em Montes Claros é muito alta, e uma das principais causas da procura por esses condomínios é a segurança que eles proporcionam, porém, a cidade muda drasticamente sua forma quando condomínios fechados são construídos, alterando a configuração da cidade e interferindo, de maneira negativa, na malha urbana.

A paisagem urbana é um outro fator alterado pela arquitetura do medo. Com todos os artifícios usados para a proteção, a arquitetura acaba perdendo sua função de embelezadora da cidade, deixando o espaço urbano visualmente desagradável e transformando-o em um espaço sombrio e inóspito, onde todos se escondem e vivem tentando se proteger da violência.

Por fim, pode-se constatar que a arquitetura da violência vem para segregar a sociedade, provocar retrocessos, interferir negativamente na forma da cidade e alterar a paisagem urbana. No caso de Montes Claros/MG, vê-se a necessidade de melhorias em segurança pública e de medidas que amenizem a crescente violência, de modo a estagnar ou regredir o uso da arquitetura do medo por parte da população, visto que o fim da violência e a mudança radical na forma como as pessoas lidam com ela são ideais um tanto quanto utópicos na sociedade atua.

REFERÊNCIAS

CORRÊA, R. L. O espaço urbano. São Paulo: Editora Ática, 2000.

FERRAZ, S. M. T et al. Arquitetura da violência: os custos sociais da segurança privada. XI Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional – ANPUR. Salvador, BA, maio, 2005.

FERRAZ, S. M. T; JORGE, I. C; GONÇALVES, C. Arquitetura da violência: medo, proteção e isolamento. XIII Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional – ANPUR.
Florianópolis, SC, maio, 2009.

GOMES, P. I. J. Reação social e vitimização em Montes Claros/MG: Um diagnóstico do perfil das vítimas de crime e da subnotificação entre junho de 2008 e julho de 2009. Universidade Estadual de Montes Claros – Unimontes. Programa de pós-graduação em desenvolvimento social. Montes Claros/MG. 2010.

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Disponível em: <http://www.cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=314330&search=min as-gerais|montes-claros> Acesso em: 10 mar. 2013.

MOURA, A. A. Pereira; HERSMDORFF e PRATA, M. Morphological Analysis and Urban ntervention in a Piece of Montes Claros: The Conferência Cidade Cristo Rei. International Seminar on Urban Form, Ouro Preto, MG, 2007

NASCIMENTO, D. C et al. A violência urbana e sua influência na arquitetura das residências de classe média: O caso de Juazeiro do Norte/CE. VI Encontro Nacional da Anppas. Belém, PA, 2012.

TAVARES, D. A. Arquitetura da violência: Um estudo sobre insegurança pública em Belém em meio à segregação social e a cultura da barbárie. 3ºEncontro da Região Norte da Sociedade Brasileira de Sociologia: Amazônia e Sociologia: fronteiras do século XXI. GT6: Democracia, violência e conflitos sociais. Manaus, AM, 2012.



Edvaldo de Aguiar Fróes
Cadeira N. 01
Patrono: Alpheu Gonçalves de Quadros

UM DOLOROSO CASO
DE INFANTICÍDIO

Encontrava-se o Dr. Jansen no seu atendimento diário no consultório hospitalar, quando foi chamado pelo Delegado de Polícia acompanhado por dois militares, para exame pericial de um recém-nascido encontrado morto num vaso sanitário de uma residência na cidade.

Tratava-se de uma gestante, que ocultara dos seus familiares e vizinhos a sua indesejada gravidez e que, num ato desesperado, após o nascimento do concepto, jogou-o no vaso sanitário, junto com a placenta!

O jovem médico recordou-se dos ensinamentos recebidos na disciplina de Medicina Legal, a denominada “DOCIMASIA HIDROSTÁTICA PULMONAR DE GALENO”: método seguro, antigo e mais utilizado pela Perícia, baseado na densidade do pulmão, que flutuará caso o recém-nascido respirou; caso contrário, terá aquele densidade maior que a água e, por conta disso, ficará pesado e não irá flutuar. Deve ser feita até 24 horas após a morte do infante.

E, assim, diante dos olhares atônitos dos militares, Delegado e a sua enfermeira, o médico abriu o tórax do natimorto retirando um dos pulmões, mergulhando-o imediatamente num balde cheio de
água, constatando-se a flutuação do mesmo, ou seja, o feto nascera vivo!

Era, sim, um lastimável caso de infanticídio!

Caberia à autoridade policial, de posse de Laudo Pericial, encaminhar o caso ao Judiciário...

A TEMÍVEL FEBRE MACULOSA

Estava transcorrendo tudo tranquilo no Hospital, quando chegou, para consulta de urgência, um paciente em estado grave, proveniente de Catuni, à beira do rio Gorutuba, na zona rural.

Paciente prostrado, com hipotensão arterial, vômitos escuros, cefaléia i ntensa, calafrios, conjuntivas oculares injetadas, fotofobia e mialgia intensa principalmente nas panturrilhas, taquicardia, febre alta de 40°C.

O mais impressionante era o aspecto da pele do tronco e membros superiores, com manchas violetas escuras e os dedos das mãos totalmente enegrecidos, com aspecto de necrose.

Segundo os acompanhantes, tudo começara há 04 dias após a partida de futebol em pequeno campo próximo ao rio, com febre, dor de cabeça e vômitos, com tratamento caseiro e piora progressiva do quadro.

Foi imediatamente iniciado o tratamento sintomático, com soroterapia venosa, antitérmico/analgésico após dissecção de veia e coleta de sangue e urina para exame, com o paciente internado na Enfermaria.

Chamou a atenção de Jansen o estado de hipercoagulabilidade do sangue coletado, obstruindo as agulhas.

O médico pressentiu que encontrava-se diante de um caso até então raro, necessitando de um estudo imediato e lá foi ele em busca do seu velho livro de “DOENÇAS INFECCIOSAS E PARASITÁRIAS” de autoria do famoso Professor Ricardo Veronesi, docente da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo).

A febre maculosa tem como principais fontes de infecção os gambás e roedores silvestres (preás, capivaras, coelhos do mato) e também cães de zonas onde a moléstia é endêmica, merecendo especial atenção, porque, além de transportadores de vetores (carrapatos) do seu habitat para os domicílios, podem também funcionar como reservatórios de rickettsias (microrganismos causadores da moléstia) e, além disso, desempenham papel importante na exaltação de virulência, ao alimentarem parcialmente os carrapatos, antes destes se fixarem na pele do homem!

Como já dissemos, a via de transmissão principal (vetor) é o CARRAPATO AMBLYOMA CAJENNENSE e, segundo alguns autores, também os percevejos podem, eventualmente, transmitir a moléstia. Nos carrapatos, é através do líquido das glândulas salivares, salientando-se que a simples picada não é suficiente para a transmissão da febre maculosa. É necessário que haja período de mais ou menos 8 horas para ativação da rickettsia, tornando-se infectantes. O carrapato é popularmente conhecido por “estrela”.

Completando a sua revisão, o médico constatou que antibióticos de largo espectro de ação, tais como Terramicina (oxitetraciclina) e Aureomicina eram indicados para o tratamento, optando pelo uso do primeiro, injetável, ampolas de 2ml com 100mg, intramuscular de 08/08 horas.

Infelizmente, aquele caso evoluiu mal, com toxemia intensa, choque e necrose de dedos da mão, devido ao processo de trombose arterial, confusão mental, torpor intenso e óbito.

Ressalte-se aqui a denominação TYPHUS, deriva do grego, significando “fumaça” ou “vapor” e foi empregada por HIPÓCRATES para designar estado especial de confusão mental, com tendência ao estupor!

Comunicou a ocorrência ao Serviço Público local (SESP) e o colega encaminhou amostras de sangue para exame em BH, mas não recebeu os resultados, restando apenas o diagnóstico de presunção clínica!

Algum tempo depois, teve a oportunidade de atender mais 03 casos com quadros semelhantes, da mesma região de Catuni, com mais dois óbitos e somente um respondeu ao tratamento antibiótico, sem maiores sequelas, ficando, assim, aquela sensação de frustração, porém, com o dever cumprido!

Eram lições que a prática Médica diária, numa pequena comunidade, proporcionava ao profissional disposto a exercer tão nobre profissão!



Jânio Marques Dias
Cadeira N. 08
Patrono: Antônio Jorge

IDENTIDADE E CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO NORTE MINEIRO

“O reconhecimento de uma herança cultural e sua
transmissão supõem a continuidade de uma
representação da história, tanto por monumentos
quanto por ideias e acontecimentos”
(MALHADO, 2002. p. 15)
.

O norte de Minas Gerais, conhecido, por vários séculos, como Sertão de São Francisco. Teve suas primeiras investiduras civilizatórias no século XVI com a expedição Bruzza Spinosa, que tinha como mentor espiritual o Padre Jesuíta João de Aspicuelta Navarro. “A expedição de Espinosa-Navarro, em 1553, partindo de Porto Seguro (BA) percorreu toda a região, chegando até o Rio de São Francisco de onde retornou.” (OLIVEIRA, 2000, p.20) Durante um ano e meio essa expedição adentrou aproximadamente 350 léguas por terra.

Transcorrido esse tempo a referida expedição volta para Porto Seguro e o Jesuíta narra, por meio de carta ao seu superior, os benefícios e malefícios que a terra oferece, falou também, sobre a flora, a fauna e os tipos humanos com suas práticas e crenças. Mas o principal objetivo era “descubrir se havia alguma nação de mais qualidade, ou se havia na terra cousa porque viessem mais christãos a povoal-a, o que summamente importa para a conversão destes gentios. ” E é dessa forma, com essa “precoce presença do português” (OLIVEIRA, 2000, p.21) que inicia-se a ocupação do Norte de Minas Gerais, que somente na segunda metade do século XVII e consumada através de doações de grandes sesmarias.

Na segunda metade do século XVII, bandeirantes paulistas, homens corajosos e gananciosos, mas ao mesmo tempo, tementes a Deus, fundaram as primeiras povoações em um espaço marginalizado e hostilizado por autoridades metropolitanas. A Construção de capelas com autorização do rei foi um grande elemento responsável pelo surgimento das cidades na região, e a partir desse sustentáculo religioso, o catolicismo é introduzido no sertão como força e referência para o colono combater o mal e purificar o sertão que estava associado à morada do diabo. Ao descrever a natureza. W. Dean afirma:

[...] Serra, sua cobertura vegetal, de capoeiras e caatingas,
entremeadas de veredas, podia também ser associada à morada do
diabo, como pretendiam fazer crer os jesuítas do século XVII ao
descreverem as matas virgens. (DEAN, 1996, p.76)

No século XVIII, com a exploração do ouro na região da mineradora, o sertão se torna um espaço produtor, um dos responsáveis para abastecer a região mineradora. A ocupação dessa região caracterizou-se por uma ocupação nitidamente distinta da até então realizada em outras partes da capitania, “pois estava marcada, de um lado, por uma presença humana maior e culturalmente mais diversificada, e do outro, pelos novos usos, manejos, conhecimentos e representações simbólicas” (RIBEIRO, 2005. p. 173).

No geral, a região apresentava uma posição privilegiada em relação ao restante da capitania, suas “antigas atividades econômicas como a caça, a pesca, o extrativismo vegetal e a agricultura sofreram modificações importantes” (RIBEIRO, 2005. p. 173). Com a
introdução de duas novas atividades econômicas, a mineração e a pecuária, as atividades anteriores perdem sua importância, “não significando a sua eliminação, pois continuavam a desempenhar um papel muito significativo nas estratégias de reprodução social dos habitantes daquela região” (RIBEIRO, 2005. p. 174). Essas duas atividades econômicas se transformam nas duas maiores riquezas da colônia, “símbolos de poder econômico e político de uma sociedade desigual que vai se formando ao longo daquele século no Sertão Mineiro” (RIBEIRO, 2005. p. 174). A mineração, embora tenha sido explorada por todo território mineiro, foi encontrada apenas em pontos isolados do sertão, responsável pelo aparecimento dos primeiros povoados constituídos em pólos locais, tinham importância comercial e administrativa.

Porém é a atividade da pecuária que irá desenhar o perfil do território do Sertão Norte Mineiro, abrangendo praticamente quase toda região. O historiador Cesar Henrique Porto assim descreve sobre essa atividade:

Para o atendimento de uma demanda que se expandia rapidamente, estruturam-se na região enormes fazendas de gado, além de uma lavoura de gêneros de subsistência. Temos então um quadro econômico dessa vasta porção norte do estado por volta do primeiro terço do século XVIII (PORTO, 2007, p.28).

Nesse contexto, o gado foi transformado no produto de troca mais importante do sertão norte mineiro, responsável pelo abastecimento de carne e couro. O sertanejo foi se fixando ao território apropriando-se dele e transformando-o com suas práticas, manejos e crenças. O Sertão passa ter características próprias, com uma trajetória diferenciada do restante da capitania, apresentando impactos culturais e religiosos, criando uma cultura própria e transformando o credo romano, que é algo singular, com valores e crenças agregados ao cotidiano do homem sertanejo.

Com a chegada da Família Real no inicio do século XIX, o sertão presenciou mudanças sociais e culturais importantes causadas pelo grande afluxo populacional vindo de todas as partes do mundo. “Os portos ficaram movimentados, principalmente o do Rio de Janeiro, com um vaivém de estrangeiros como nunca se vira igual: do Oriente, da América do Norte e Central, das Ilhas Mediterrâneas, da África, da Ásia e, também, da Europa” (LEITE, 1996, p.45). O tratado de Comercio e Amizade assinado pelo Rei Dom João VI, não teria tanta importância no processo de formação do povo sertanejo se não tivesse autorizado a abertura dos portos rompendo com o exclusivismo colonial.

A partir desse documento, imigrantes judeus chegaram ao sertão sem mascaras, ao contrário do que acontecia em épocas anteriores na qual eram obrigados a se disfarçarem de cristãos novos e os cristãos protestantes não precisavam esconder suas agruras religiosas. Neste mesmo século, a Província de Minas Gerais apresentou a maior população escrava, cerca de 370.459 escravos, “foi fácil seus desvio da mineração decadente para a agricultura” (MONTEIRO, 1973, p.16) e com menor intensidade para a pecuária.

Na segunda metade do século XIX, o sertão apresentou uma população diversificada composta por brancos de várias partes do mundo, índios aldeiados, escravos, cafuzos e mamelucos , esses dois últimos frutos da miscigenação colonial. O perfil desta população no
final do século em questão apresentaria traços culturais e religiosos diferenciados com poderes divinatórios, conhecimentos mágicos e atitudes religiosas.

Antigo e novo, tradicional e moderno, estrangeiros de diversas origens e nativos, concepções importadas e elaboradas internamente:tudo encontrava-se, as vezes, misturando-se e outras isolando-se, nas terras americanas de Portugal. (PAIVA, 2001, p.94)

A crença Cristã, católica e protestante, em confronto com as crenças judaicas e africanas, transformou radicalmente o universo religioso do sertanejo, criando nele uma cultura e identidade com possibilidades para explorar e explicar seu cotidiano. Para Victor Leonardi foi criado no Sertão uma “cultura própria de um estilo de vida no qual a brutalidade (em relação a negros e índios) não eliminava totalmente a cordialidade, expressa em diferentes tipos de linguagem” (LEONARDI, 1996, p.312).

A Reforma Protestante, movimento religioso do século XVI que criticou diversos comportamentos da Igreja católica, e a Contra-Reforma, movimento da Igreja Católica contra as contestações iniciada pelo monge Martinho Lutero, juntamente com o Regime de Padroado, privilégios concedidos ao rei, que tratava-se de um instrumento jurídico, no qual, possibilitava a coroa controlar diretamente nos negócios religiosos na colônia, foram os grandes influenciadores nas transformações políticas, culturais, sociais e religiosas do mundo ocidental.

Na perspectiva de liberdade, o sertanejo criou um sistema de crenças, fruto da vivência com outros povos, inaugurando no sertão uma religiosidade própria rompendo com antigos costumes da igreja católica tradicional. O universo religioso sertanejo passou a oferecer novas interpretações sobre o sagrado, a religião passa ser vista como uma “manifestação da cultura espiritual, e por isso mesmo persistente e capaz de resistir, mas do que qualquer outra manifestação” (BITTENCOURT FILHO, 2003, p.63).

Por intermédio de fusões e interpenetrações, os indivíduos e os grupos assimilam atitudes, sentimentos e tradições de outros indivíduos e de outros grupos e, de alguma maneira, partilhando suas respectivas experiências e histórias, terminam como que incorporados numa mesma vivência cultural (BITTENCOURT FILHO, 2003, p.63).

A religiosidade sertaneja, atualmente é vivida como uma experiência direta com o sagrado, desvinculada “em grande parte dos conteúdos oriundos dos discursos religioso e teológico elaborados pelos especialistas” (BITTENCOURT FILHO, 2003, p.72). Vinculados ao campo e a natureza, a religiosidade do povo sertanejo se expressa de forma simples envolvendo fenômenos naturais: secas, chuvas, plantações e colheitas. “Era na Religião que este povo procurava inspiração para enfrentar os dois grandes problemas que o afligiam: as calamidades da natureza e o sistema de exploração” (HAUCK, 2008. P. 221).

Como se pode notar, as práticas religiosas, do sertão no final do século XIX, reproduzem de maneira sincrética um mundo invisível, no qual o bem e a mal são elementos inspiradores. A contribuição de seres humanos de todos os credos (europeus, africanos, indígenas) transformou o sertão em um espaço de expressão cultural muito mais rico, do que as sociedades estrangeiras que aqui fincaram moradas. De imitadores, a criadores de costumes e tradições, ricas por sua pluralidade étnica e sua diversidade religiosa.


DEAN, W. A Ferro e a Fogo: A História e a Devastação da Mata Atlântica. São Paulo: Cia das letras,1996.

BITTENCOURT FILHO, José. Matriz Religiosa Brasileira: Religiosidade e Mudança Social. Petrópolis-RJ: Vozes, 2003.

LEITE, Ilka Boaventura. Antropologia da Viagem: Escravos e Libertos em Minas Gerais no Século XIX. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996.

LEONARDI, Victor. Entre Árvores e Esquecimentos: História Social nos Sertões do Brasil. Brasília: Paralelo 15, 1996.

MALHANO, Clara Emília Sanches Monteiro de Barros. Da Materialização à Legitimação do Passado: A Monumentalidade como Metáfora do Estado. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002.

MONTEIRO, Norma de Góes. Imigração e Colonização em Minas. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1973.

OLIVEIRA, Marcos Fábio Martins de. (org.). Formação Social e Econômica do Norte de Minas. Montes Claros - MG: Editora Unimontes, 2000.

PAIVA, Eduardo França. Escravidão e Universo Cultural na Colônia: Minas Gerais, 1716 – 1789. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001

PORTO, César Henrique de Queiróz. Paternalismo, Poder Privado e Violência: O Campo Político Norte - Mineiro Durante a Primeira República. Montes Claros-MG: Editora Unimontes, 2007

RIBEIRO, Ricardo Ferreira. Florestas Anãs do Sertão: O Cerrado na História de Minas Gerais. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.


José Jarbas Oliveira Silva
Cadeira N. 62
Patrono: José Esteves Rodrigues

O CONSTRUTOR DA
CATEDRAL METROPOLITANA
NOSSA SENHORA APARECIDA DE MONTES CLAROS

FRANCISCO JOSÉ GUIMARÃES (1886 -1940) – Chiquinho Guimarães (costumeiramente chamado), nascido no século XIX, filho de Joaquim José Guimarães e Maria Saraiva de Almeida. Casado com Guilhermina Medeiros do Ó, progenitor de uma prole de 14 filhos, era profissional (autoditada) da arquitetura, artista na produção de tijolos, do cimento armado, da carpintaria, administrador de obras, cuja capacidade e genialidade comprovaram-se nas obras de construção do Grupo Escolar Gonçalves Chaves, Clube Montes Claros, Hotel São José, das residências dos senhores Nozinho Colares, João Pimenta de Carvalho, Francisco Ribeiro, entre outras. Assumiu a missão de construir um templo católico, jamais pensado para a Montes Claros de outrora, porquanto o projeto arquitetônico, oriundo da Bélgica, chegou, por engano, à Diocese, pelas mãos do Cônego Belga Jerônimo Lambin, e tratava-se de uma majestosa Catedral, certamente destinada a uma das capitais brasileiras. Erro à parte, o Bispo Diocesano D. João Antônio Pimenta (1859-1943) confiou-lhe a magna arquitetura, iniciada em 1926 com recursos oriundos da Diocese, dos fieis, do Governo Federal, e penso que da Bélgica, também. A construção sofreu várias paralisações em função das crises econômico-financeiras – 1929 a 1944, advindas pela queda da bolsa norte-americana, revolução constitucionalista e da II Guerra Mundial, que causaram atrasos nos repasses do Governo Federal, penso que, na mesma linha, os envios de recursos oriundos da Bélgica, também. A Catedral de Nossa Senhora Aparecida foi inaugurada no ano de 1950, mas nem Chiquinho Guimarães que esteve durante 14 anos à frente da magna obra, tampouco, o Bispo Diocesano D. João Antônio Pimenta tiveram o deleite ou proveito, em vida, da honorífica Casa de Deus, pois faleceram em 1940 e 1943 respectivamente. Deixou como discípulo o construtor Melinardo Gomes dos Santos. Nada obstante, em reconhecimento e honra de seus feitos, Construtor e Bispo nela repousam, em berço de ternura e paz.


Francisco José Guimarães



Leonardo Álvares da Silva Campos
Cadeira N. 97
Patrono: Urbino Vianna

ANTROPOFAGIA À MODA DE SALINAS QUE VIROU CRÔNICA DE MACHADO DE ASSIS

Em 1890, Salinas deixou de ser, durante alguns meses, um ponto ignorado no mapa de Minas Gerais, para figurar, com certo alarde e destaque, nas manchetes dos principais jornais e revistas do País. Também um de nossos maiores literatos, Machado de Assis, tomou a sua pena para contar, em uma crônica com uma pitada de humor, publicada na Gazeta de Notícias, de 01 de setembro daquele ano, um fato relacionado com a antropofagia, uma prática rara de consumo de carne humana por seres humanos, acontecido naquela cidade norte-mineira, fazendo coro às manchetes.

O antigo arraial de Santo Antônio de Salinas foi elevado à categoria de vila em 1880, tendo sido instalada sua a primeira Câmara Municipal em 1883.

Decorridos sete anos de tal evento, registrou-se uma série de crimes no lugar, com a população ficando atordoada e mesmo atemorizada ao encontrar, sempre, os cadáveres parcialmente devorados. Não havia dúvida: um criminoso, à solta, estava matando e devorando seus semelhantes.

Até que ele foi descoberto, preso e processado. Era um lavrador conhecido por Clemente, que confessou ao delegado ter eliminado e devorado parcialmente seis pessoas: dois homens, duas mulheres e duas crianças. Sabe-se que o processo foi conduzido pelo juiz municipal Belisário da Cunha Melo, de Grão Mogol, que tinha jurisdição sobre Salinas, mas o seu desfecho é ignorado em nossos dias.

Duas das vítimas do lavrador, no entanto, chegaram a participar com ele, anteriormente, de atos de canibalismo: sua amásia Francisca, que o auxiliou a matar e se alimentar de pedaços de uma moça, conhecida por Maria, e um certo Basílio, que esteve com ele na casa de Fuão Simplício, ambos como hóspedes, pessoa que foi assassinada com uma mão de pilão, assada e devorada.

A imprensa nacional e Machado de Assis tomaram conta da divulgação de tais fatos, naquela época, mas, segundo Manoel Esteves, em seu livro Grão Mogol, publicado em 1961, não foi Clemente a “importar” a antropofagia para Salinas, e, sim, um certo Leandro, filho de Sabininha, e a mulher conhecida por Emiliana, responsáveis pela morte de um menino, cujo corpo foi enfiado em um espeto de devorado. Para tanto, os dois convidaram alguns amigos, inclusive o lavrador Clemente, que, em seu interrogatório, revelou ter comido uma boa parte de carne assada.

O trecho principal da crônica de Machado de Assis, acerca da repugnante prática então registrada em Salinas, é o seguinte:

“Em 1890, foi descoberto e processado em Minas Gerais um antropófago. Um só já era demais; mas o processo revelou outros, sendo o maior de todos o réu Clemente, apresentado ao juiz municipal de Grão Mogol, dr. Belisário da Cunha Melo, ao qual estava sujeito o termo de Salinas, onde se deu o caso. Não era este Clemente nenhum vadio que preferisse comer um homem a pedir-lhe dez tostões para comer outra coisa. Era lavrador, tinha vinte e dois anos de idade. Confessou perante o delegado haver matado e comido seis pessoas: dois homens, duas mulheres e duas crianças. Não tenham pena de todos os comidos. Um deles, a moça Francisca, antes de ser comida por ele, com quem vivia maritalmente, ajudou-o a matar e a comer outra moça, de nome Maria. Outro comido, um tal de Basílio, foi com ele à casa de Fuão Simplício, onde pernoitaram; e estando o dono da casa a dormir, os dois hóspedes com uma mão de pilão o mataram, assaram e comeram. Mas, tempos depois, um sábado, 29 de novembro de 1890, levado pela saudade, matou o companheiro Basílio, e estava a comer-lhe as coxas, tendo já dado cabo da parte superior do corpo, quando foi preso.”

Manoel Esteves, que inseriu esses casos de antropofagia em sua citada obra, disse que “não tive outras notícias nem sei como acabou o processo. Hão de lembrar-se que esse foi o ano terrível (1890-1891) em que se perdeu dinheiro que não pude ler mais nada.”

Sobre a crônica de Machado de Assis, escreveu Manoel Esteves (obra citada): “O fato está patente na sua obra (de Machado de Assis) e deu motivo a que o escritor Mário Casassanta escrevesse o livro Minas e os mineiros na obra de Machado de Assis.

ATENÇÃO: DAQUI A POUCO UM METEORITO VAI CAIR

Os meteoritos são fragmentos de asteroides ou cometas e até restos de planetas findos provenientes do espaço intercósmico. Atraídos pela força de gravidade da Terra ao se aproximarem de nossa atmosfera, têm tamanhos variados de simples poeira a corpos celestes com quilômetros de diâmetro. Em outras palavras, tratamse de meteoroides que atingem a superfície terrestre, podendo ser um aerólito (rochoso), siderito (metálico) ou siderólito (metálicorochoso). Eles são o único elo entre a nossa população e outros universos estranhos.

A probabilidade da queda de um deles num lugar predeterminado é nula. Porque tais corpos sólidos podem cair em qualquer ponto de nossa superfície, desde o fundo do quintal da mais humilde moradia, num oceano e mesmo sobre a cabeça de um chefe de Estado.

Enquanto nações como os Estados Unidos e a Rússia enviam ao espaço, com certa regularidade, os seus astronautas, ou mesmo avançadas naves que automaticamente recolhem amostras de solo do nosso satélite, a Lua, ou de certo planeta, sem a presença de tripulação, um homem do meio rural, destituído de qualquer formação escolar, desses que ainda duvidam que seus semelhantes, raros, já pisaram em solo lunar, poderá um dia ser surpreendido pela queda de um desses corpos celestes em seu milharal.

É evidente que a queda de meteoritos é pouco comum e até improvável em certas circunstâncias, mesmo porque a maioria deles não chega a tocar na superfície, desintegrando-se antes por combustão. Porém, completado um ciclo de atração e queda, o acontecimento é logo cercado de pompas, ganhando espaço na mídia e ênfase em todas as conversas, cercando-se das mais variadas especulações e exageros.

O Norte de Minas Gerais, um manancial de fatos sui generis, registra também uma estrepitosa queda de um meteorito, se bem que em data já distante. Foi na noite de 9 de fevereiro de 1906, entre 19 e 20 horas. O pedaço de matéria espacial cortou o céu de Montes Claros e foi se esborrachar contra a Serra do Queixo, na ocasião nas proximidades da Malhada Real, em fazenda pertencente ao capitão Cesário da Rocha (Fazenda do Sapé), no então distrito de Brejo das Almas. Brejo das Almas é hoje o município de Francisco Sá. A Serra do Queixo está localizada dentro do município de Capitão Enéas (outrora Burarama), desmembrado do de Francisco Sá e que se limita com o de Montes Claros.

Em 1906, a cidade de Montes Claros ainda não oferecia uma visão plausível do futuro mais alvissareiro que lhe estava reservado, de um dos principais polos desenvolvimentistas do Estado. Mostrando uma bonita topografia e à margem do rio Vieira, tinha apenas quatro praças e 16 ruas, com bons prédios para a época.

As culturas prósperas no município eram a cana-de açúcar, o fumo e os cereais. Não existiam grandes fortunas, mas o povo era, em geral, remediado, ou seja, possuía, com raras exceções, terras e alguma criação cavalar e de gado vacum. O prédio do mercado, construído pela Câmara Municipal, que empregou nele mais de 40 contos, mostrava uma construção sólida e bastante espaçosa, como vários compartimentos para os feirantes. Na feira, os habitantes faziam provisão de víveres para toda a semana, como era o costume nas cidades do norte e do sul do Estado. A população urbana era de cinco mil almas.

O “Minas Geraes”, de 24 de abril de 1913, trazia a seguinte informação sobre Montes Claros: “Dotada de salubérrimo clima e de inúmeras riquezas naturais, ao município de Montes Claros está reservado um futuro grandioso, com a próxima chegada do ramal férreo que de Curralinho (km 855) a E. F. Central do Brasil vai levar até o seu território, estando já a 54 quilômetros do entroncamento os trilhos do mesmo ramal, que passará por Bocaiúva e terá até Montes Claros uma ext. de 264 km.”

Assim, naquele início de noite numa cidade pequena, não se podia supor que a rotina abrasadora do sertão fosse quebrada por algo vindo do espaço sideral de intrincados mistérios. Várias pessoas tiveram a sorte de ver o bonito bólide incandescente cortando o céu, numa enorme curva do nascente para o norte, espargindo luz em sua queda.

O jornal “A Opinião do Norte”, que então era editado em Montes Claros, em seu número 11, registrou o fato, comentando: “Não só pelo volume do corpo luminoso, como pelo grande estampido que se seguiu à sua queda, tão intenso como um tiro de peça ouvido a certa distância, supõe-se que não muito longe daqui deve ter caído.”

“Calculando-se em 5 minutos, com bastante aproximação, o tempo decorrido desde que se inflamou o aerólito até quando se sumiu ele no horizonte, pode-se conjecturar que o lugar de sua queda deve distar desta cidade 102 quilômetros ou 17 léguas.”

“Muitas pessoas que acompanharam com atenção o belo fenômeno meteorológico, afirmam que, ao estampido, seguiu-se, em alguns lugares, tremor de terra bastante intenso que chegou a produzir choque de garrafas e prateleiras, bater de portas, etc.”

No dia posterior à queda, praticamente não se trabalhou. Afinal, o susto fora muito grande. E, como o mundo não acabou, o trabalho foi colocado em plano secundário, com diversas rodas sendo formadas para discutir o episódio. Todavia, os sertanejos das imediações da Serra do Queixo – local do impacto final, com frisado antes -, supersticiosos, juraram distância daquele local.

Em busca do bólide, diversas expedições, em épocas diferentes, foram formadas em Montes Claros. Há dois registros históricos mais confiáveis, um dando conta que a busca ao objeto celeste restou infrutífera, e outro opinando em contrário, mas assegurando que o mesmo permaneceu no lugar.

Diz Nélson Vianna, em “Efemérides Montes-clarenses”, página 85: “Em busca do local onde caiu o referido meteoro, seguiram de Montes Claros diversas expedições, em épocas diferentes. Uma delas foi chefiada pelo Vigário da Paróquia, cônego Carlos Vincart, de que fizeram parte várias pessoas, entre elas o cel. Antônio dos Anjos e Antônio Narciso Soares. Chegaram ao local denominado Serra do Queixo e encontraram duas brechas dentro da mata, produzindo sulcos, partindo do alto da referida serra. No seu roteiro, com cerca de doze metros de largura, viam-se derrubadas diversas árvores de grossos troncos, vários galhos quebrados, pedras deslocadas, tudo amassado à passagem do estranho corpo. No entanto, não foi este encontrado. Devia, porém, ser de natureza calcária, porque, no seu trajeto, foram vistos inúmeros fragmentos de calcita.”

A dedução final de Nélson Vianna é incorreta, pois a Serra do Queixo é de rocha calcária, formada no nosso pré-cambriano superior (600/700 milhões de anos atrás). O impacto do meteorito contra ela logicamente fragmentou o calcário, daí surgindo fragmentos de calcita,
um carbonato de cálcio natural cristalizado no sistema romboédrico, sendo que a água no calcário faz precipitar esse carbonato de cálcio.

Já o “Annuario de Minas” (colhemos esta nota há alguns anos sem anotação do número da publicação, que era emprestada e para restituição imediatamente à consulta, mas o registro está numa de suas revistas) revela: “Na tarde de 9 de fev. de 1906, em terras da Faz. da Malhada Real ou do Sapé, junto à Serra do Queixo, a 10 léguas de Montes Claros, caiu um belíssimo meteorito ou aerólito, que foi escoberto por uma expedição feita em out. de 1909 pelos srs. cônego Carlos Vincart, engenheiro Pierre Edward d’Auzac, coronel Antônio dos Anjos e o cap. A. Narciso Soares. A Serra do Queixo é formada de minério de ferro magnético e atrai sempre a queda de bólides
(ferro meteórico). O agora chamado “meteorolito Montes Claros” é composto de óxido de ferro, cal, níquel e magnésio. Tem volume de 92 metros cúbicos e de peso 1.500 arrobas (122 mil quilogramas), sendo o maior aerólito que haja caído até hoje sobre a terra mineira. É pena que o Museu Nacional do Rio de Janeiro não o tenha ainda mandado recolher, para ali figurar ao lado do célebre Bendegó.”

Uma observação: não consta, e nem procede, que a Serra do Queixo seja formada de minério de ferro, que se trata de uma rocha da qual se pode obter ferro metálico, sob a forma de óxidos, como a hematita e a magnetita, pois ela é eminentemente calcária. Não consta também que o meteorito que ali caiu (no início da noite, e não de tarde), em princípios do século XX, foi recuperado, daí não se saber sua composição, mormente sendo a cal redundante da decomposição térmica do calcário para utilização na construção civil, além das indústrias farmacêutica, metalúrgica e cerâmica, como também o óxido de cálcio tem larga utilização para produção de hidróxido de cálcio, que controla a acidez de determinados solos. Ignora-se mais que nela tenha caído outro meteorito, a não ser aquele primeiro e único de 1906.

Porém, em tempos mais recentes, foi encontrado um pedaço de pirita magnética na referida Serra do Queixo, que pertencia a um historiador montes-clarense, sendo posteriormente surrupiado do seu acervo. Encontrada em qualquer parte do mundo por ser o sulfeto mineral (dissulfeto de ferro) mais comum, a pirita, ou pirita de ferro, originariamente não é magnética, mas essa que desapareceu faz supor que não passava de um fragmento daquele bólide, sendo que tais corpos celestes costumam ter em sua composição minerais, inclusive
o minério de ferro, com um forte magnetismo.

Da rodovia asfaltada (BR-122), que liga Janaúba à BR-251 (Rio/Bahia), pode-se ver a Serra do Queixo como moldura de fundo, do lado direito do motorista. Nela se nota um ponto que parece ter sido rompido ou arrebentado por algum tipo de impacto, tendo uma coloração avermelhada, diferente da do calcário, que é cinzaazulado. Observando aquele ponto mais de perto, do distrito de Orion, município de Capitão Enéas, próximo da BR-122, a melhor visibilidade parece dirimir qualquer dúvida. Tudo leva a crer ter sido ali o trecho da serra que recebeu o bólide, lugar muito no alto, quase em sua cumeeira, e praticamente inacessível a escaladas amadoras.

O corpo estranho, uma visita do espaço sideral aos moradores da região à época, penetrou rocha adentro, cavando como que um tipo de sepultura para si. Ao mesmo tempo, parece emanar da serra um convite para que uma expedição moderna arranque daquelas entranhas calcárias o aerólito ali adormecido desde 1906, para estudos mais acurados e exposição à visitação pública em museu desta região. Entretanto, nunca percamos de vista que o homem, em prospecções de qualquer natureza que já realizou e realiza, deve sempre atuar em função do meio em que vive, nunca contra ele. Somos nós, e mais ninguém, a ter de modelar nossos progressos nas condições naturais do meio em que nos encontramos.


BIOGRAFIA

Leonardo Álvares da Silva Campos nasceu em Montes Claros, em 03 de junho de 1953, filho de Bento Álvares da Silva Campos e de Terezinha Peres Álvares da Silva Campos. Estudou nos Colégios São José, Dulce Sarmento, São Norberto e CB-MOC, concluindo o curso de Direito na Faculdade de Direito do Norte de Minas - FADIR, da Fundação Universidade Norte de Minas - FUNM, hoje Universidade Estadual de Montes Claros - UNIMONTES.

Entrou para o jornalismo aos 16 anos de idade, no jornal “Diário de Montes Claros” (hoje extinto), a convite de um de seus proprietários, Júlio César de Melo Franco, tendo iniciado na página policial e depois na editoria de cidade, sendo seu preceptor o também jornalista Jorge Silveira. Chegou a editor desse jornal, assinando também as colunas “Vida Estudantil”, em substituição a Itamaury Teles de Oliveira, e “Passado & Presente”, editando ainda a “Página Literária”, fundada por João Valle Maurício, em substituição a Jorge Silveira.

Também foi editor dos jornais “Jornal do Norte” (já extinto), de propriedade de Américo Martins Filho e Jorge Antônio dos Santos, e “O Gorutuba”, de Janaúba, então de propriedade do jornalista Raimundo Brandão. Entre os anos 70 e 80, foi colaborador do suplemento de cultura do jornal belo-horizontino “Estado de Minas”.

Foi um dos fundadores da Academia Juvenil de Letras de Montes Claros – ACAJUL, sendo também membro da Academia Montes-clarense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais (o primeiro montes-clarense da história aprovado como seu sócio) e do Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros.

Lecionou ainda, como professor substituto do civilista Sidney Chaves, a matéria Introdução à Ciência do Direito, na mesma FADIR em que se formou. Advoga na área cível desde setembro de 1983.

Foi sócio correspondente da Sociedade Orquidófila de Belo Horizonte, sendo presentemente sócio e um dos fundadores do Clube dos Amigos dos Pássaros de Montes Claros e do Norte de Minas - CAPAMN, cujo estatuto é de sua lavra.

Em 1979, participou, como conferencista, do XIII Congresso Nacional de Espeleologia, promoção da Sociedade Excursionista e Espeleológia, da Escola de Minas da Universidade Federal de Ouro Preto.

Apresentou ainda o trabalho “Grutas e Abrigos na Memória Nacional” durante o I Seminário Regional sobre Conservação da Natureza - SERCON/Norte (Montes Claros), de 31 de agosto a 03 de setembro de 1981, promovido pelo Governo do Estado de Minas Gerais, Prefeitura Municipal de Montes Claros e Núcleo de Tecnologia em Ciências Agrárias, da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, dentro do tema de abertura, “A Natureza na Preservação da Memória Nacional”.

Foi conselheiro e vice-presidente do Conselho Consultivo do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural de Montes Claros (1990/1991), e também membro da Comissão de Cultura da Ordem dos Advogados do Brasil – Subseção de Montes Claros (MG), na gestão do presidente Francisco Alencar Carneiro.

Lançou os livros “O Homem na Pré-História do Norte de Minas” (único original selecionado em concurso nacional pela Comissão de Apreciação do Mérito das Publicações, da Imprensa
Oficial do Estado de Minas Gerais, em 15 de fevereiro de 1982, razão de sua indicação e aprovação do seu nome para sócio do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais); “A Inacabada Família Humana”, pela Editora Armazém de Ideias, de Belo Horizonte, em 2008; e “Saluzinho, Luta e Martírio de um Bravo (A Sociologia dos Conflitos Agrários no Brasil)”, pela D’Plácido Editora, em 2014, 1ª edição de 3.000 exemplares esgotada.

No Concurso Norte-mineiro de Poemas, Contos e Crônicas, realizado em Janaúba, em 20 de fevereiro de 1987, promoção da mídia local, representada pelo jornalista e radialista Luiz Carlos Novaes, e Prefeitura Municipal daquele município, ficou em primeiro lugar em crônica, com “Flor de Pólvora”, e em segundo lugar em conto, com “2001”, suas duas únicas produções literárias que estiveram concorrendo no referido evento.

Participou do Curso de Aperfeiçoamento em Informações Turísticas, ministrado pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial – SENAC, no período de 20 de maio a 07 de junho de 1974, em Montes Claros, dentro do Programa Intensivo de Preparação de Mão de Obra no Vale do São Francisco (convênio SUVALE/PIPMO/ ABCAR).

Recebeu o “Diploma Jair de Oliveira”, da I Delegacia Regional do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Minas Gerais, em 24 de fevereiro de 1984, pelos seus relevantes serviços prestados à comunidade montes-clarense, nas comemorações do primeiro centenário da Imprensa local.

Foi homenageado com um poema, ao lado dos também escritores e pesquisadores Arthur Jardim de Castro Gomes e Simeão Ribeiro, pelo literato José Prudêncio de Macêdo, em seu livro de poemas “Entre outras coisas... Eva”, na parte “Perfilando Acadêmicos”, Editora Gráfica Polígono, Montes Claros, 1986.

Recebeu mais o “Diploma de Mérito Godofredo Guedes”, da Sociedade Cultural Montes-clarense (então formada por músicos, atores, artistas plásticos, escritores, compositores, bailarinos, produtores de moda, desportistas, agentes de viagem, artesãos, educadores, intelectuais e demais formadores de opinião de Montes Claros), em 21 de dezembro de 1995, por méritos comprovados no campo da Espeleologia, área do Patrimônio Histórico.

Viu-se agraciado por três vezes com o “Prêmio Parnaso de Cultura”, em 2004, 2014 e 2016, então uma promoção anual do escritor José Luiz Rodrigues, em Montes Claros.

Participou com artigos e/ou trabalhos literários nas seguintes publicações: “Montes Claros, sua História, sua Gente, seus Costumes”, Hermes de Paula, Minas Gráfica Editora Ltda., volume 2, 1979 - “Antologia montes-clarense”, pág. 262 (“Pisa sertaneja”); “Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais”, Imprensa Oficial de Minas Gerais, volume XXI, 1986/1991, págs. 370/373 (“Da Pangeia à quica-d’água, uma nova explicação para a dispersão dos marsupiais”) e 375/377 (“O ermitão dos socavões”); “Antologia da Academia Montes-clarense de Letras”, edição comemorativa dos vinte anos de sua fundação (1966/1986), volume II, Barvalle Ind. Gráficas Ltda., págs. 141/143 (“Um Homem Justo”), 144/145 (“O ermitão dos socavões”), 145/146 (“Penas amarelas, lindas, mortas...”), e 146/148 (“Sinfonia de Nadinha”); “Sesquicentenário da Vila Diamantina”, Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1983, págs. 273/279 (“Assim nasceu Diamantina, berço de JK e onde ‘reinou’ Chica da Silva”); “Dados Históricos & Lei Orçamentária” – Coração de Jesus, 1984, págs. 19/20 e 23/24; “Menino Pescador”, Reivaldo Canela, editora não informada, 2008, págs. 02/05; “Os Filhos do Dragão Cospem Fogo”, editora não informada, 2012, págs. 131/132 (“E-mail enviado pelo escritor Leonardo Campos”), 133/136 (“A Ética e a Moral”), 137/141 (“Eta mulher sem vergonha”), 143/145 (“Demônios que vêm com a noite”), 305/310 (“Encruzilhada das línguas viperinas”) e 311/321 (“Nunca estaremos com a morte”); “Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros”, volume XIII, 2º semestre de
2014, págs. 79/84 (“As Múmias de Itacambira Explicadas”); “Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros”, volume XV, 2º semestre de 2015, págs. 95/110 (“Miguel Domingues, Fundador de Montes Claros”); “Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros”, volume XVI, 1º semestre de 2016, págs. 53/56 (“O Falso Dr. Douville”); “Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros”, volume XVII, 2º semestre de 2016, págs. 68/70 (“Como se forma uma Caverna”); “Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros”, volume XVIII, 1º semestre de 2017, págs. 63/65 (“Origens do Homem e do Estado”); “Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros”, volume XIX, segundo semestre de 2017, págs. 70/77 (“Entrevista para o Informativo do IHGMC”); novamente a mesma “Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros”, volume XX, págs. 106/110, primeiro semestre de 2018 (“Prefácio”); e autor do prefácio do livro “A Arte Rupestre na Pré-história do Médio São Francisco”, de Dário Teixeira
Cotrim, Gráfica Editora Millennium, 2018, págs. 11/15.

Possui publicados em jornais variados, como “Diário de Montes Claros”, “O Gorutuba”, “Jornal do Norte”, “Estado de Minas” e “Hoje em Dia” (os dois últimos de Belo Horizonte), além de informativos estudantis não guardados pela memória, desde 1966 até presentemente, poemas, artigos, crônicas, contos e reportagens.

Viu-se agraciado, pelo seu livro “Saluzinho, Luta e Martírio de um Bravo (A Sociologia dos Conflitos Agrários no Brasil)”, com o “Prêmio Projeção e Oscar de Minas” como “obra literária do ano”, promoção do colunista social e jornalista João Jorge (jornal “O Norte”/Programa “Revista Gerais”, Canal 2, Montes Claros), em 09 de maio de 2015.

Recebeu o diploma “Vip’s de Minas e Celebridades”, do mesmo colunista social e jornalista João Jorge, juntamente com a Sociedade Cultural Norte-Mineira/jornal “O Norte de Minas”, em 2016, na categoria de “escritor recordista de vendas na história da literatura de Montes Claros”, pelo seu livro “Saluzinho, Luta e Martírio de um Bravo (A Sociologia dos Conflitos Agrários no Brasil)”.

Recebeu ainda o “Prêmio Astros & Estrelas”, mais uma vez pelo livro “Saluzinho, Luta e Martírio de um Bravo (A Sociologia dos Conflitos Agrários no Brasil)”, promoção do colunista social Maicon Tavares e do jornal “Gazeta Norte Mineira”, em 25 de novembro de 2016.

Ganhou o “Prêmio Projeção e Valores de Minas”, na categoria de “cultura (literatura)”, outra promoção do colunista social e jornalista João Jorge e Sociedade Cultural Norte-Mineira/jornal “O Norte de Minas”, em 22 de dezembro de 2017.

Foi agraciado também com diploma e medalha concernentes ao “Prêmio Menção Honrosa dos Gerais”, “pelos relevantes serviços prestados à sociedade norte-mineira”, em 13 de abril de 2018, numa promoção do colunista social e político Arthur Amorim Júnior e “Jornal de Notícias”, de Montes Claros.

Dá nome à “Sala de Arqueologia Dr. Leonardo Campos” da Fundação Museu José Alves de Macedo, na cidade de Coração de Jesus, desde 2017.


NOTAS:
Matéria publicada originariamente no jornal “Diário de Montes Claros”, de Montes Claros (MG), de 08 de setembro de 1978.

Matéria publicada originariamente no jornal “Estado de Minas”, de Belo Horizonte, em 18/10/84.



Maria da Glória Caxito Mameluque
Cadeira N. 40
Patrono: Georgino Jorge de Souza

A HISTÓRIA DA APAC
EM MONTES CLAROS

A implantação da APAC (Associação de proteção e assistência aos condenados) em Montes Claros nasceu do sonho do advogado Pedro Mameluque Mota, quando militando há mais de vinte anos na Pastoral Carcerária, desejava encontrar algo que pudesse humanizar a pena e recuperar o detento, o que as cadeias comuns, com problemas de superlotação e condições precárias nunca iriam conseguir.

Numa viagem a São José dos Campos teve oportunidade de conhecer o advogado Mário Ottoboni, criador do método naquela cidade e voltou determinado a implantá-lo em Montes Claros. De lá para cá, foram muitas as tentativas e muitas providências, mas até hoje os desafios continuam.

O QUE É A APAC?

É um método de valorização humana para oferecer ao condenado condições de recuperar-se, logrando dessa forma o propósito de proteger a sociedade e promover a justiça.

Por que método? Porque se trata de uma metodologia que rompe com o sistema penal vigente, cruel em todos os aspectos e que não cumpre a finalidade precípua da pena: preparar o condenado para ser devolvido em condições de conviver harmoniosa e pacificamente com a sociedade. O método cuida em primeiro lugar da valorização humana da pessoa que errou e que, segregada ou não, cumpre pena privativa da liberdade. Normalmente, os infratores condenados são discriminados no mais amplo sentido da palavra. A maioria é vista apenas como criminosos irrecuperáveis, lixo da sociedade, não como pessoas respeitáveis em sua dignidade, como imagem e semelhança de Deus. Aqui vale lembrar: “Toda pessoa é maior que o seu próprio erro.”

O importante desse método também é a proteção da sociedade, fato que ocorre evidentemente com a recuperação de cada infrator, uma vez que cada preso recuperado é um bandido a menos na rua.

São elementos fundamentais do método APAC:

01 - Participação da comunidade
02 - O recuperando ajudando o recuperando
03 - Trabalho (tanto no regime semi-aberto como no regime fechado)
04 - A religião e a importância de se fazer a experiência de Deus
05 - Assistência jurídica
06 - Assistência à saúde
07 - Valorização humana, base do método APAC
08 - A família
09 - O voluntário
10 - O Centro de reintegração social

A APAC nasceu em São José dos Campos, SP, em novembro de 1972, idealizada pelo advogado paulista Mário Ottoboni e um grupo de amigos cristãos que se uniram com o objetivo de amenizar as constantes aflições vividas pela população prisional da Cadeia Pública de São José dos campos.

Tem por finalidade recuperar os condenados e proteger a sociedade. A sua filosofia é matar o criminoso e salvar o homem, usando o amor como fator básico da recuperação.

São seus princípios norteadores : o amor como caminho, o diálogo como entendimento, a disciplina e o trabalho como essencial, a fraternidade e o respeito como metas, a responsabilidade para o soerguimento, a humildade e a paciência para vencer, a família como suporte E Deus como fonte de tudo.

O método APAC que ainda tem enfrentado dificuldades na sua aceitação, é fundamentado na valorização humana à luz do evangelho e objetiva a execução de trabalhos com presos dos três regimes prisionais: o fechado, o semi-aberto e o aberto, sendo reconhecido pela ONU como o método mais eficaz para a ressocialização dos encarcerados, servindo como órgão auxiliar das autoridades constituídas na execução da pena privativa de liberdade. Por maiores que sejam os esforços do governo de ampliar o número de vagas com instalação de novas unidades, esses atos por si só, não resolverão a demanda principal no tratamento do preso que é a sua ressocialização e retorno ao convívio social. Isso só se consegue com um trabalho direto com o preso, no local onde reside em companhia de sua família.

Apresentando baixo índice de reincidência , o método socializador empregado pela APAC tem alcançado grande repercussão no Brasil e no exterior, contando hoje com mais de 100 unidades espalhadas em todo o território nacional, em funcionamento ou em fase de implantação.

A implantação da APAC em Montes Claros tem sido uma luta constante e difícil. Fazia-se necessário um terreno que pudesse abrigar o novo prédio. Após várias tentativas junto à Prefeitura Municipal, finalmente foi conseguida a doação de um terreno durante a gestão do
Prefeito Dr. Luiz Tadeu Leite, sendo presidente da APAC o Dr. Pedro Mameluque Mota, e sua legalização com a lavratura da escritura e competente registro.

Providências também foram tomadas junto aos senhores juízes, no sentido de destinar verbas para a APAC, no que a diretoria foi prontamente atendida.

Agora era providenciar recursos para a construção do prédio e fazia-se necessária a adesão da comunidade e órgãos de classe para que o projeto fosse executado. Com a posse de nova diretoria, comandada pelo Sr. Edilberto Colares, em solenidade na Câmara Municipal de Montes Claros, e a adesão de entidades, como a Justiça, o Ministério Público, as Lojas Maçônicas, o Rotary Clube, os três poderes constituídos, a Copasa e a Igreja Católica através da Pastoral Carcerária, uma esperança surgiu no sentido de que o antigo sonho fosse concretizado.

Segundo Valdeci Antônio Ferreira, Diretor Executivo da FBAC (Federação Brasileira de Assistência aos condenados) a APAC nasceu em São José dos Campos em 1972 e dois anos depois, ou seja, em 1974, constituía-se juridicamente. Assim, um método inusitado de tratamento de presos surgia no cenário prisional como extremamente revolucionário e a Prisão Humaitá, no centro da cidade, então administrada sem o concurso das polícias civil, militar ou agentes penitenciários, se transformava em um centro de atenção e peregrinação. Durante 25 anos, delegações de todas as partes do Brasil e outros países ali aportavam para conhecer in loco o Centro de Reintegração Social – APAC e a terapêutica penal aplicada, capaz de reverter os altos índices de reincidência, além de reduzir os custos, fugas, atos de violência, etc. De lá para cá, já se passaram mais de 45 anos e várias comarcas do Brasil e diversos países replicaram
a experiência da APAC de São José dos Campos e deram seguimento ao carisma e ideal do fundador Mário Otttoboni, de modo a manter acesa a chama do amor e da esperança no coração das pessoas privadas de liberdade e colocar em prática a filosofia “Matar o criminoso e salvar o homem.”

O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais lançou em dezembro de 2001 o “Projeto Novos Rumos”, com o objetivo de incentivar a expansão da APAC, como alternativa de humanização do sistema prisional no Estado.

Apresentando índices de reincidência em torno de 7%, o método socializador empregado pela APAC tem alcançado grande repercussão no Brasil e no exterior.

Em 1986, a APAC se filiou a Prison Fellowship International, órgão consultivo da ONU para assuntos penitenciários. A partir dessa data, o método passou a ser divulgado mundialmente por meio de congressos e seminários. Em 1991 foi publicado nos EUA um relatório afirmando que o Método APAC podia ser aplicado em qualquer lugar do mundo.

Em Minas Gerais, a APAC pioneira foi fundada em 1986, na cidade de Itaúna que sediou em 2002 um seminário de estudos e conhecimentos sobre o Método para representantes de 14 países.

POR QUE O MÉTODO APAC É INOVADOR?

Todos os recuperandos são chamados pelo nome, valorizando o indivíduo; é o único estabelecimento prisional que oferece os três regimes penais: fechado, aberto e semi-aberto com instalações independentes e apropriadas às atividades desenvolvidas; não há presença de policiais e guardas penitenciários e as chaves ficam em poder dos próprios recuperandos; a religião é fator essencial da recuperação; a valorização humana é a base da recuperação, promovendo o reencontro do recuperando com ele mesmo; há um menor número de recuperandos juntos, evitando formação de quadrilhas, subjugação dos mais fracos, pederastia, tráfico de drogas, indisciplina, violência e corrupção; tem-se a assistência à família do recuperando e à vítima ou seus familiares como uma das formas de se manterem vivos os elos afetivos, reascendendo o ânimo do condenado para se recuperar; a manutenção da ordem é obtida com a ajuda de recuperandos designados para representar os interesses da cela.

COMO ESTÁ A APAC EM MONTES CLAROS

Depois de muitos entraves burocráticos, finalmente a APAC de Montes Claros, que tem projeto para 120 vagas, vai participar de convênio com a SEAP – Secretaria de Estado de Administração prisional., que é responsável pelas APACs, a fim de conseguir recursos para a construção do prédio.

Foram presidentes da APAC em Montes Claros: Dr. Pedro Mameluque Mota, Edilberto Colares, Dr. Otávio Rocha Machado e a partir de 2016 até o momento, o Cel. Inácio de Loyola Goulart Araújo.


REFERÊNCIAS:
Ottoboni, Mário. Vamos matar o criminoso? Método APAC – Paulinas, 2001 Projeto novos rumos na execução penal . Tribunal de Justiça de Minas Gerais. (2004)



Doação do terreno para a APAC: Antônio Augusto, Pedro, Glorinha,
Luiz Tadeu leite e Angela Dias Nunes


Nilson dias figueiredo e Inácio Loyola


Pedro recebendo um troféu como Presidente Benemérito da APAC, em 28/09/2012


atual presidente Inácio Loyola com o Deputado Tadeuzinho e o SEcretário de Defesa Social Dr.Sérgio Menezes, conversando sobre a construção da APAC em 22/08/2017


 


Manoel Freitas dos Reis
Cadeira N. 75
Patrono: Manoel Ambrósio

SERTANEJAR
A CAMINHADA DE MANOEL FREITAS

O homem do sertão, o Povo Xakriabá, pássaros raros, animais do cerrado, entranhas da mata seca, tesouros dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri. Destaques da exposição “Sertanejar”, do fotógrafo Manoel Freitas, que prossegue até setembro no Museu Regional do Norte de Minas, em Montes Claros, no Corredor Histórico.

Na mostra, mais de 100 imagens, na verdade a colheita de 20 anos percorrendo carreiros, subindo montanhas. No âmago, registros científicos nos Parques Estaduais da Mata Seca (Manga), Lagoa do Cajueiro e Serra Azul (Matias Cardoso); além da Reserva Biológica do Jaíba e Parque Nacional Cavernas do Peruaçu, em Januária.

Em 2016, foi o sexto brasileiro no registro fotográfico de aves na maior enciclopédia do gênero do país, a Wiki Aves. Na atualidade, cataloga cientificamente 3.788 aves de 288 espécies distintas, sendo dois primeiros registros no Sudeste Brasileiro, três em Minas Gerais e dezenas no Norte de Minas e Vale do Jequitinhonha.

Desde 2004, acompanha no Vale do Peruaçu o rito da maior nação indígena de Minas Gerais, o Povo Xakriabá, que ocupa mais de 70% do território de São João das Missões. Nesse tempo, percorreu suas 34 aldeias, conheceu o rico artesanato, garimpou retratos de sua gente, acompanhou o fortalecimento da cultura, da tradição.

Jornalista e integrante do Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros, Manoel Freitas é sócio-fundador do Clube de Observação de Aves do Norte de Minas e, durante sua exposição, fará palestras para grupos de escola e visitantes. Além disso, em vídeo será exibido um mosaico de mil faces das gerais, ou seja, espelho da estrada afora...


Manga - Extremo Norte de Minas Gerais - Brasil



Maria Clara Lage Vieira
Cadeira N. 100
Patrono: Wan-dick Dumont

D. MODESTA

Corre o ano de 1970.

A cena é de uma mãe inexperiente, sempre preocupada com a filha primogênita, que é um bebezinho.

De repente, bate à sua porta uma senhora de rosto simpático, gestos decididos, um sorriso largo. Ela faz geleia e corre pela cidade vendendo seu produto. Mas ela não tem pressa, apesar de já ter percorrido muitas distâncias e ainda ter outro tanto para percorrer. Ela se apresenta, pergunta pelas pessoas da casa, brinca com as crianças.
Dante de uma mãe ansiosa, ela pega o bebê de seis meses e o senta na palma de sua mão, levantando-a. Enquanto a mãe fica assustada, a criança ri.

E foi assim que tivemos a honra, a alegria, o prazer de conhecer D. Modesta.

O nome se adaptou muito bem a sua pessoa: mulher simples, guerreira, incansável, forte, sincera, encorajadora. E se chamava Modesta, essa grande mulher!

Nasceu entre nós uma amizade infinita.

Modesta de Souza Alves nasceu em Bocaiuva, MG, em 22 de abril de 1919, filha única de Januária de Souza Moura.

Quando ela nasceu, sua mãe tinha apenas quinze anos. Era uma criança, não sabia assumir a maternidade e se ausentava por meses para trabalhar na roça.

Modesta teve infância pobre, sofrida. A mãe dela, muito cedo, se tornou mãe solteira e se desorientou. Mais tarde, casou-se e veio buscá-la, mas ela não quis acompanhar a mãe.

O casamento durou pouco, separaram-se e ela apareceu já doente, vivendo por pouco tempo.

Sobre o pai, Modesta não gostava de falar.

Diante de tudo isto, ela ficava aos cuidados da Tia Herculana, com a qual conviveu por algum tempo, em Sentinela, povoado de Bocaiuva.

Quando a tia faleceu, ainda criança, ela foi acolhida por um primo que ela chamava de “papai Zé Moreira” e que morava com a família no bairro Bonfim, onde é hoje a Escola Municipal Maria das Dores. Era uma casa pequena, mas acolhedora e ali ela recebeu carinho, e ali ela cresceu, junto com os filhos do Sr. Zé Moreira e D. Eva Moreira. Foram seus companheiros de infância: Odília, Elisa, Maria José, João e Daniel.

Nesta época, a família tinha amizade com D. Bibiana, avó de João do Lino Mar (João Besouro), que chefiava um terno de catopé, desenvolvendo o folclore em Bocaiuva.

Quando Modesta completou 14 anos, conheceu Mariinha, filha do Sr. Pedro Tobá. Era uma moça solteira, trabalhadora, muito dinâmica. Ela foi gerente do Hotel Bonfim, que existiu em Bocaiuva, na Avenida Montes Claros, próximo à Estação Ferroviária. Ela sabia

das dificuldades da família que acolhera Modesta e, por isto, levou-a para fazer pequenos serviços no hotel: lavar louça, varrer o quintal, molhar plantas. Tudo isto a adolescente foi aprendendo aos poucos, com muita boa vontade. Trabalhava lá durante o dia e, à noite, retornava a casa do Sr. José Moreira. Com o tempo, ela já sabia todo o serviço e se tornou copeira do hotel.

Quando Mariinha se casou com o Sr. Mário Coutinho, funcionário da Central do Brasil, este, posteriormente, foi transferido para chefiar a estação de Bueno do Prado. Modesta já tinha 18 anos, o hotel havia sido fechado e, surpreendentemente, o casal a levou para morar com eles.

Modesta amou o primeiro filho do casal, cuidou dele com muito carinho e o afeto entre eles cresceu, mesmo quando ele se tornou adulto.

Em Bueno do Prado, ela conheceu Antônio Alves, que era natural de Inhaí, cidade próxima a Diamantina. Ele também era funcionário da Central do Brasil, solteiro, com seus quarenta anos. Nasceu uma simpatia entre eles, que se transformou em amor. Namoraram e se casaram em 1941. Ficaram morando em Bueno do Prado, na “turma”, que consistia em casas construídas à beira da linha, destinadas a funcionários da Central do Brasil.

Foi uma época feliz. Ele era um bom marido e ela morava perto de Mariinha, que batizou a primogênita do novo casal, Maurícia.

Moraram em Bueno do Prado por muito tempo. Quando José, o segundo filho, e Maurícia estavam na idade escolar, não foi possível continuar morando ali porque a escola era em Granjas Reunidas e as crianças, para estudar, caminhavam pela linha do trem, correndo grandes perigos.

O Sr. Antônio pediu transferência para Navarro, o que facilitou os estudos de seus filhos, porque a escola era bem perto de casa.

A família gostava de morar na “turma”: os meninos apreciavam ouvir o apito do trem e os passageiros acenavam para eles.

Ainda em Engenheiro Navarro, ela recebeu, com muita tristeza, a notícia da morte de Mariinha, em um acidente. Foi muito grande o pesar para Modesta, pois ela foi muito importante em sua vida.

Finalmente, a família veio morar em Bocaiuva, no bairro Pernambuco, longe do barulho do trem e trazendo consigo uma criança de dois meses que o casal havia adotado aos oito dias de nascida e que foi registrado com o nome de Adelson (hoje falecido, deixando filhos e netos).

Fugindo do aluguel, o Sr, Antônio construiu a casa da família, uma casa grande que até hoje tem um vasto quintal, onde se plantaram muitas árvores frutíferas, como mangueira, abacateiro goiabeira, figueira, laranjeira, que estão lá até hoje.

Modesta era muito prendada. Além da geleia, que a cidade toda conhecia, ela fazia doce de figo, de laranja da terra, de goiaba. O marido sempre a elogiava por suas habilidades culinárias.

Apesar de seu grau de escolaridade ser somente o segundo ano primário, ela lia correntemente, escrevia e sabia fazer contas. E também estava sempre atenta ao rendimento escolar dos filhos, seu comportamento na escola. Fazia questão de conhecer todos os professores de suas crianças. Nunca faltou incentivo seu para que
seus filhos estudassem, principalmente os meninos, que gostavam de futebol e, às vezes se distraíam com isto.

Quando tinha 29 anos, Modesta se tornou evangélica. O marido era católico, mas isto nunca foi problema entre eles.

Quando havia culto na casa deles, ele assistia e tratava a todos muito bem e ela, por sua vez, arrumava sua melhor roupa para ele ir à Missa.

Viveram 31 anos de casados. Em 1972, o marido faleceu, quando os filhos já eram adultos.

Modesta era de um caráter enérgico e incansável, mas zelava bem pela família e pela casa. Alegre, sempre cantava enquanto trabalhava. Os filhos dizem que ela tinha uma voz muito bonita. Eles se recordam de que ela tinha momentos de oração com os filhos.

Em 2002, aconteceu o inesperado. Ela sofreu um AVC e ficou hospitalizada por vários dias. Quando voltou para casa, já não era mais a mesma: a memória começou a faltar-lhe. Mais tarde, os médicos diagnosticaram o Mal de Alzheimer.

Mesmo assim, não deu trabalho. Falava pouco e o passado tornou-se presente em sua vida, mas ainda cantava os hinos da Igreja Assembleia de Deus.

Faleceu em 2010!

A família de Modesta e Antônio é:

Filhos: Maurícia, José (já falecido), Sílvio, Luci e Adelson (adotivo, já falecido).

Genros: Guilherme, casado com Maurícia e Adilson, casado com Luci.

Nora: Maria das Graças, casada com Sílvio

Netos: Soraya, Siloé, Sidney, Leandro, Silmara, Leonardo, Maria, Flávia, Renato e Fabiano.

Bisnetos: Lorena, Maria Júlia, Tainá, Maria Eduarda, Maria Luísa, Maria Teresa, Maria Cecília, Amanda, Fabiano e Maria Clara.

Modesta deixou exemplo e lições de vida para seus filhos, netos, bisnetos.

O mundo atual está muito marcado pela violência. Presenciamos ações hediondas de pessoas que não têm a menor misericórdia para com seus semelhantes.

Há quem diga que criminosos são vítimas da sociedade. Tiveram uma infância sofrida e, por isto, são revoltados.

Pode ser. Mas não é a revolta que pode resolver a nossa vida. Somos todos filhos de Deus e, cada um a seu modo, precisa carregar a sua cruz e enfrentar os senões que a vida apresenta.

Modesta é um exemplo maravilhoso da misericórdia de Deus que ela recebeu e distribuiu. Não teve uma infância feliz. Enquanto criança e jovem, viveu da ajuda dos outros. Sofreu preconceitos por ser mulher, pobre e negra.

Entretanto, quando se tornou adulta, foi arauto da concórdia e da paz para com todas as pessoas que conviveram com ela.

Seus filhos, netos, bisnetos sentem verdadeiro orgulho, admiração e amor por ela. Sua lembrança vive no coração de cada um E nós, que a conhecemos e que recebemos dela somente palavras e gestos de simpatia e solidariedade, agradecemos a feliz oportunidade de ter convivido e aprendido com ela a arte de viver.

Fernando Pessoa, grande poeta português, divagando sobre a fugacidade do tempo e das coisas, dizia: “ Tudo o que é bom passa o tempo necessário para se tornar inesquecível”.

Podemos afirmar esta verdade também quando se trata de pessoas. Por exemplo, como D. Modesta, que passou entre nós de tal maneira, que é impossível esquecê-la.

Sua figura enfeita o quadro de pessoas que enriqueceram a história de Bocaiuva.



Marilene Veloso Tófolo
Cadeira N. 95
Patrono: Terezinha Vasquez

RETALHOS DA VIDA

Imagens, fatos, casas e ruas percorrem o meu pensamento, sou criança, a calçada é alta, o relógio do mercado toca, os homens com suas mercadorias chegam ao local.

A casa ao lado, com suas janelas azuis, ruas calçadas de pedra, recebe um homem jovem que vai visitar o tio: Filomeno Ribeiro, chefe político e tio do visitante.

Quem é este que chega? É Darcy Ribeiro, hoje conhecido pelo Brasil a fora!...

Sou criança, olho da minha janela os transeuntes que chegam, a pé, a cavalo e carro de bois!,,, No solar de portas azuis, hoje Rua Governador Valadares, um homem na cadeira de balanço recebeu os visitantes, que colocam aos chapéus no cabide ao lado. Tenho medo do homem de bigodes e passo correndo!....

Quando ele não está, eu vou devagarzinho à janela, para ver uma pedra grande de cristal e as cristaleiras cheias de louças e cristais.

Sentada na cadeira alta, está a tia Laudy vestida com saia longa e blusa, é esposa do Filomeno Ribeiro, uma mulher enigmática e educada, que nos recebe cordialmente. No quintal, cheios de plantas está a cozinha, onde as pessoas fazem as quitandas do dia.

O personagem citado, que agora chegou é sobrinho do político Filomeno Ribeiro. Porque estou recordando isto? É que estou lendo o seu livro Maira e as lembranças chegam devagar....

Cidade Montes Claros, estado de Minas Gerais, perdida no sertão norte mineiro, outros tempos, outros dias, e as idéias se intercalam. No meu registro de nascimento está escrito testemunha Darcy Ribeiro. Este é o motivo de estar recordando o passado!

Reminiscências, fotos, palavras, personagens voltam à memória como um filme. Onde está a minha rua? A minha história, os meus brinquedos, o folclore da cidade com seus personagens que se foram (catopés, cavalgadas, marujos, festa do Divino, Igreja do Rosário, da Matriz)? Para onde foi Maria Salomé, Geralda, Zita. Diola, Vovô Veloso e tantos outros, que ai moraram ou conviveram?

Escuto falar sobre a fábrica de tecidos do Cedro, da Igreja do Rosário, dos Morrinhos, e dos “bois”. Falam do padre Dudu, da rua Quinze, de João Alves, de Tiburtina, do tiroteio dos coronéis e jagunços do meu avô Jose Antônio Veloso, chefe político em Mirabela, de Simeão Ribeiro Pires, João Alves, Darcy Ribeiro e Teófilo Pires.

Foi neste ambiente, perto da minha casa que o meu pai Sebastião Souto Veloso, sempre acompanhou a política local. Escuto ao longe a música “pisa na fulô, não maltrate o meu amor”. A cantora Dalva de Oliveira veio especialmente para o comício em Mirabela, na casa do meu avô, e os chefes políticos foram convidados (Malaquias Pimenta, Teófilo Pires, Simeão Ribeiro e outros.).

São imagens e fatos que vêem à memória. O tempo vai, o tempo volta e como professora de História, hoje aposentada, gosto de rever fatos e acontecimentos locais, regionais e buscar as suas origens e conseqüências, ontem e hoje.

A vida é um caleidoscópio, não sabemos as ligações que virão e não poderia supor que uma criança poderia reter a figura de homem que transitou entre nós, correu o mundo, viveu, foi exilado, mas hoje mora em outra galáxia, e continua na nossa história com seu sorriso enigmático!



Narciso Gonçalves Dias
Cadeira N. 9
Patrono: Antônio Lafetá Rebello

A ASSOMBRAÇÃO DE
MANÉ CORISCO

Eu não creio em assombrações, mas morro de medo delas. Pois segundo a filosofia de Chaves, o simpático herói do seriado de mesmo nome: “tenho plena certeza que elas existem e as piores são as que nos espiam no escuro e puxam o nossos pés quando estamos dormindo. Pois é, pois é, pois é...”.

Veja bem querido leitor, que num povoado do nosso querido norte de minas, um caboclo de nome Mané Corisco, daqueles tido como cabreiro ao extremo, sempre desconfiado, suspeitando que alguma coisa invulgar está ou estará acontecendo à sua volta. Toda vez que tomava umas cachaças ficava muito bravo e fazendo artes assombrosas. Certa feita chegou a brigar com o pai, noutro dia ralhou com a mãe, num momento de ira rasgou o caderno de fiado do Seu Pedrinho da venda. Estas dentre outra tantas malcriações que dariam para fazer um rosário e ainda sobravam contas para fazer um terço.

O bondoso pastor evangélico do lugar, tentou levar Mané Corisco para o bom caminho:

– Mané, você sabia que a bebida alcoólica é um veneno?

– Bobagem, Seu Pastor! Hic… A água já matou muito mais gente!

– O quê! Você ficou maluco?

– Não Pastor. O senhor sabe quantas pessoas morreram no dilúvio?

Foi ai que o Pastor descobriu que se tratava de um caso perdido.

Numa segunda-feira, Seu Domingos acabara de fechar sua Farmácia, pois já estava tarde e estava iniciando uma chuva muito forte e muito fria. Tão logo ele vestiu o pijama e se preparou para dormir, Mané Corisco, cambaleando aproximou da casa do farmacêutico e bateu na porta:

- Abra aí, Seu Domingos!

- Vai dormir Mané, eu não vou abrir, já são dez horas. Amanhã você vem que eu atendo.

Mané voltou a bater na porta e agora com maior insistência.

A esposa do farmacêutico então lhe pede para abrir a farmácia e atender o Mané, pois o escândalo que ele estava aprontando indicava tratar-se de uma emergência que justificaria o trabalho de levantar e atender o pobre diabo que estava na chuva pedindo por socorro.

Contrariado Seu Domingos atende a esposa e decide abrir a drogaria onde encontra Mané Corisco bêbado na porta todo encharcado.

- Qual o remédio você precisa, fala logo que eu lhe atendo e voltarei a dormir?

E Mané diz na maior tranquilidade:

- Não quero remédio não. Eu vim me pesar na balança da farmácia.

Conta-se que Seu Domingos contraiu a Síndrome de Hulk, que vem a ser um transtorno psicológico em que há um descontrole desproporcional da raiva. E não suporta nem ouvir o nome do Mané.

Tentativas de se acabar com esse dilema nunca deram bons frutos e eram tempo perdido por todos do povoado. O sonho da comunidade era ficar livre das tormentosas atitudes de Mané Corisco nas suas bebedeiras. Costuraram uma foto de Santo Onofre na cueca do bebum, mas num dos pileques o Mané perdeu a cueca, pois como se diz cueca de bêbado não tem dono. Novenas foram feitas e todas as espécies de magias conhecidas foram tentadas, mas tudo sem êxito.

Até que como de costume, numa sexta feira de lua cheia, à meia noite, lá vem Mané Corisco bêbado que nem um gambá, se segurando nas rédeas da sua mula preta e bambeando como uma gelatina de cana. Com muito esforço ele levantou os olhos em direção a uma grande gameleira que fica bem no meio do caminho entre a venda de Seu Pedrinho e sua casa. Ato contínuo lembrou-se das historias que o povo conta que aquela árvore, nas noites escuras ficava apinhada de Almas Penadas, Saci Pererê, Mula sem cabeça, Sapo sem perna, Cobras Voadoras e um monte de coisas ruins. Mas fazer o que? Já não guiava o animal, e sim era levado por este à revelia de sua vontade. Não detinha o controle da montaria, mas o cérebro estava funcionando a mil e o medo já tomava conta de todo o seu ser.

E para completar o terrível quadro de assombrações, naquela noite sombria, o pessoal da comunidade resolveu dar um susto no coitado para que ele parasse com as perversidades com a comunidade e diminuísse o uso da cachaça. Montaram um espantalho na galha mais grossa da planta, todo vestido de branco, com olhos pintados de vermelhos, com uma melancia como chapéu e uma vela amarrada na mão. Com o vento, o espantalho balançava e se contorcia parecendo dançar freneticamente.

A mula preta de Mané Corisco ao aproximar daquele aranzel, soltou um relincho agudo e estridente, jogou o cavaleiro no chão e disparou em correria alucinada, Mané já caiu correndo e se benzendo, chegou sem fôlego em casa, todo esbaforido e suado. Refugiou-se tremendo no colo de sua mãe e desse dia em diante nunca mais bebeu, fez a primeira comunhão e tornou-se o melhor sacristão da paróquia.

Já a mula preta do Mané Corisco, eu tive notícias de que foi vista galopando em altíssima velocidade, com seus sete palmos de altura, nos belos campos do município de Coração de Jesus. Atravessou o Rio São Francisco chegando a cidade de São Paulo, onde virou moda de viola de muito sucesso nas vozes de Tonico e Tinoco. Pelo menos é o que se conta.


A Assombração de Mané Corisco



Wesley Soares Caldeira
Cadeira N. 91
Patrono: Sebastião Sobreira Carvalho

ESPIRITISMO: DE DIAMANTINA
PARA MONTES CLAROS

A partir de 1853, jornais da Europa e das Américas passaram a noticiar enigmáticos fenômenos que estavam empolgando a população nos seus diversos segmentos sociais.

Naqueles dias, Victor Hugo pôde dialogar com Shakespeare e Molière, durante o seu exílio, na ilha Guernsey, sob a ação mediúnica de seu filho Charles Hugo.

Allan Kardec, pedagogo francês e escritor que tratava de educação até medicina e de gramática francesa a astronomia, tomando conhecimento desses fenômenos, empreendeu, em 1855, suas pesquisas sobre eles, aplicando o método científico positivo. Suas conclusões redundaram na publicação de “O Livro dos Espíritos”, em 18 de abril de 1857, marco inicial da doutrina e da religião espírita.

Em pouco mais de 60 dias, do outro lado do Atlântico, no Norte de Minas, o povoamento originado na Fazenda dos Montes Claros era elevado à condição de cidade.

Kardec publicou “O Livro dos Médiuns”, em 1861, e “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, em 1864; “O Céu e o Inferno” e “A Gênese”, em 1865 e 1868, respectivamente.

No Rio de Janeiro, entre 1875 e 1876, surgiam, em português, as traduções dos livros espíritas de Allan Kardec, através do Dr. Joaquim Carlos Travassos, médico, político e senador da república. Graduado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, integrava a elite educada do Império, e conhecia muito bem o francês.

As traduções da codificação de Allan Kardec se espalharam pelo País, provocando grande impressão.

*.*.*

Minas foi sendo descoberta através de regiões que os portugueses povoaram aos poucos, a Bahia e São Paulo. Os baianos acompanharam o curso do rio São Francisco em busca de mais pastagens para seus rebanhos de gado. Os paulistas, com suas bandeiras, transpuseram as escarpas do maciço da Mantiqueira, à procura de ouro e pedras preciosas.

A Minas setecentista era uma província de escassos povoados, esparsos aqui e ali nas artérias de seus caminhos e ao longo de seus rios, surgidos na medida em que o ouro foi sendo encontrado. Aos poucos, eles se concentraram na faixa que ia do sul ao norte da província, da bacia do Rio Grande às proximidades das nascentes do Jequitinhonha, entre os pontos em que se formaram a vila de Lavras e o arraial do Tijuco (TORRES, 1980, vol. I, p. 112).

Apareceram as principais povoações da capitania mineira: São João Del Rei; Vila Rica, nomeada, por fim, Ouro Preto; Mariana, a primeira capital de Minas Gerais; Vila do Príncipe, fundada em lugar que os índios chamavam Ivituruí na língua tupi-guarani — ivi-vento, turi-morro, huí-frio —, daí Serro Frio e, hoje, apenas Serro.

Bem nesse momento crucial, num documento que lavrou em 1701, Artur de Sá, governador de São Paulo, batizou a região de “Minas Gerais dos Cataguases”.

Os ciclos do ouro e do diamante escreveram os principais capítulos da história de Minas, de larga influência na história nacional e até europeia.

O Norte de Minas, nesses tempos del-rei, viveu o ciclo do couro, num papel econômico acessório: curral de Minas Gerais. Mas o arraial do Tijuco se tornaria a sede do importante Distrito Diamantino, cuja função era controlar a exploração de diamantes,
descobertos nos primeiros anos de 1720, e cuja lavra alcançou cerca de 3 milhões de quilates — uma riqueza tão assombrosa que se dizia que o céu de Minas refletia os diamantes do Tijuco, pois nesse arraial os diamantes perfeitos eram chamados de “estrelas”.

A futura Diamantina se formou em local que os indígenas designavam de Ybyty’ro’y, isto é, “montanha fria”, onde havia um pequeno córrego de margens lamacentas, por isso apelidado de Tijuco, ty-yuc, “líquido podre”, “lama”, “brejo”, em dialeto indígena. (FILHO, 1980, p. 9)

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Tomando por base a vila de Taubaté, fundada em 1645, as expedições paulistanas passaram a varar a Serra da Mantiqueira pela garganta do Embaú.

Em 1674, Fernão Dias Paes — o estoico capitão das esmeraldas — passou pelo Embaú e foi até Itacambira (Norte de Minas), em bandeira integrada, entre outros, pelo mestre de campo Matias Cardoso, que levou consigo o jovem paulista Antônio Gonçalves Figueira, seu cunhado. De retorno a São Paulo, Gonçalves Figueira não conseguiu esquecer certa região onde a bandeira estivera. Dezessete anos depois, Figueira voltou a ela para estabelecer sua Fazenda dos Montes Claros entre o rio Verde e aqueles montes esbranquiçados de xistos calcários.

A fazenda foi vendida em 1768 ao alferes José Lopes de Carvalho. O novo proprietário construiu uma sede em área aprazível e edificou uma capela nas proximidades. O santuário atraiu vizinhança na forma de casas domingueiras, para descanso das lutas da semana, nascendo um povoado.

Por conta de seus muitos formigueiros e de duas passagens assim nomeadas no rio Vieira, o lugar foi apelidado de Formigas. Em 1817, o naturalista francês August de Saint-Hilaire visitou o arraial e mencionou-o no seu valioso livro:

[...] Formigas é [...] um dos pontos principais da parte oriental do sertão, e faz-se aí um comércio importante de gado, salitre, couro e peles. O gado bovino e os cavalos vendem-se para a Bahia; o salitre vai para o Rio de Janeiro e Vila Rica, e, finalmente, parte do couro se consome em Formigas e outra parte envia para Minas Novas [...] (SAINT-HILAIRE, 2000, p. 326)

O sábio professor do Museu de História Natural de Paris descreveu o arraial:

A povoação de Formiga, sucursal da Paróquia de Itacambira, está situada à entrada de uma planície (...). Essa povoação, que pode compreender atualmente (1817) duzentas casas, e mais de oitocentas almas, é certamente uma das mais belas que vi na Província de Minas [...]. (SAINT-HILAIRE, 2000, p. 326)

O arraial de Formigas foi elevado a vila em 1831, ocasião em que foi desmembrado do distrito de Serro Frio, e se tornou cidade de Montes Claros, em 1857, pouco mais de dois meses após Allan Kardec publicar “O Livro dos Espíritos”, em Paris.

No tempo dos currais de gado de Antônio Gonçalves Figueira (primeira metade do século XVIII), uma estrada foi aberta entre Diamantina e Montes Claros. O caminho serpejava as serras e mergulhava em vales, expondo exuberantes formações rochosas de tons incomuns, e o rio Jequitinhonha parecia brincar com o viajante, cruzando várias vezes seu roteiro, rolando lento e barrento.

O zoólogo Spix e o botânico Martius descreveram a região próxima de Montes Claros:

Quanto mais nos internávamos nesta zona, tanto mais característica se apresentava a feição das paisagens: planícies desertas, com capim seco, árvores retorcidas, e, de quando em quando, uma das já mencionadas palmeiras de espinhos, o tucum [...]; as grotas, em forma de gamela, que se afundam em diversas direções, são animadas pela presença de emas, veados e tatus. (SPIX et MARTIUS, 19-, p. 81)

Então, em 1884, um jovem ourives deixou Diamantina e percorreu a bonita estrada serrana, trazendo para Montes Claros, pela primeira vez, as traduções de Joaquim Carlos Travassos dos livros de Allan Kardec.

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A religião do povo mineiro, em toda parte, era o Catolicismo, com foco no culto a Maria e na Paixão de Jesus.

O culto marial era uma tradição em Portugal e na Casa de Bragança. O tema da Paixão, aqui, era dramatizado intensamente, seja na arte seja em procissões, pela influência predominante dos franciscanos em Minas. Essa valorização de elementos afetivos e estéticos do Catolicismo retardou a introdução do Protestantismo, que nega os altares, as imagens, a liturgia e as procissões. (TORRES, 1980, vol. II, pp. 634, 636 e 637)

O clero católico foi incorporado como órgão do Estado no Brasil pela Coroa portuguesa.

Nas classes dirigentes e cultas imperava o ceticismo e agnosticismo, apesar de a educação mineira ser um produto do Catolicismo. É lembrar a importância dos grandes colégios, do Caraça, do Recolhimento de Macaúbas, da Providência, e dos seminários de Mariana e Diamantina.

A partir de meados do século XIX, formou-se um ambiente de certa crítica liberal, em termos de religião e cultura, pois foi o tempo da tribuna parlamentar e do jornalismo político.

Os diamantes deram a Diamantina palacetes mobiliados com requinte. O luxo se completava na extravagância dos banquetes e no refinamento do vestuário de suas festas, até o declínio do ciclo do diamante. Suas lojas eram bem abastecidas de mercadorias das fábricas inglesas e da moda de Paris. Anotações do início do século XVIII registraram sua vocação para a cultura. Saint-Hillaire escreveu:

Encontrei nesta localidade mais instrução que em todo o resto do Brasil, mais gosto pela literatura e um desejo mais vivo de se instruir. Vários moços (1818), cheios de nobre entusiasmo, aprenderam o francês, sem terem mestres. [...].
Os habitantes do Tijuco são principalmente notáveis na arte caligráfica e podem a esse respeito rivalizar com os mais hábeis ingleses. (SAINT-HILAIRE, 1974, p. 33)

No começo do século XIX, Diamantina já contava com a instrução pública através de suas primeiras escolas. A partir de 1841, possuía um teatro. Em 1875, foi criada uma biblioteca municipal, com 1500 livros.

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Imensamente modesta era a vida em Montes Claros. Na medida em que se abeirava o final do século XIX, seus dias eram normalmente calmos. Suas noites claras eram cheias de encanto. Enquanto aguardavam que a temperatura abrandasse, seus moradores iam formando amáveis reuniões nas portas das casas, com cadeiras nas calçadas. Ouviam-se vozes, às vezes violões e o festivo tinir dos sinos da Matriz. (VIANNA, 1972, p. 40)

A religião católica era exclusiva. Gonçalves Figueira transformou a sesmaria em fazenda e construiu uma pequena capela rústica, batida de barro, em homenagem à mãe de Jesus. Mais tarde, em 1769, o alferes Lopes de Carvalho edificou uma capela melhor a Nossa Senhora da Conceição e São José.

Somente por volta de 1912 o Protestantismo chegaria a Montes Claros, com a fundação do primeiro núcleo da Igreja Batista, por iniciativa dessa comunidade em Belo Horizonte. A Igreja Presbiteriana implantou-se na cidade em 1945.

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A chegada a Diamantina das traduções feitas por Joaquim Carlos Travassos, em que pese o domínio católico no lugar, é fácil de compreender, se considerada a disposição de sua gente para a cultura, especialmente literária.

O jovem ourives Augusto Dias de Abreu estava com 17 a 25 anos de idade quando essas traduções em vernáculo lhe foram às mãos. Ele nasceu em 2 de junho de 1859 num arraial de Diamantina chamado Rio Manso, no futuro renomeado de Couto Magalhães.

O historiador Nélson Vianna informou (VIANNA, 1964, p. 620) que Augusto era filho de Manoel Dias de Abreu e Dora Idalina Freitas Abreu, descendentes de portugueses. Aprendeu cedo o ofício de ourives, tornando-se um dos melhores do seu tempo. Com a morte do pai, em data ignorada, ele assumiu os encargos da família e decidiu se mudar para Montes Claros em 1884, com 25 anos de idade, em companhia da mãe, duas irmãs e um sobrinho. Depois traria seu irmão, Joaquim Dias de Abreu.

Por que um ourives de qualidade deixaria uma região em que os diamantes e o ouro ainda eram extraídos em quantidade expressiva para buscar outros horizontes profissionais?

Talvez a explicação seja encontrada na crise provocada pelo descobrimento das minas de diamantes na África do Sul, em 1869, que fez cair drasticamente o preço dos diamantes brutos. Até aí, essas pedras em Diamantina eram exportadas na forma bruta, para que fossem preparadas por lapidadores holandeses, os mais prestigiados nessa arte. Com a crise, tornava-se importante valorizar o produto brasileiro, com sua exportação já lapidado. Comerciantes de diamantes se arruinaram nesse período, diante dos preços pagos pelos europeus, embora a superioridade das pedras brasileiras. As remessas para o exterior foram interrompidas, propositalmente. Uma fábrica de lapidação foi instalada em 1873, por iniciativa local; era a primeira fábrica dessa natureza, no País, com a produção ao encargo de um técnico holandês, vindo da Europa especialmente para isso. Nos anos de 1880, havia várias fábricas de lapidação na região.

Aires da Mata Machado Filho, em seu livro Arraial do Tijuco, cidade de Diamantina, pouco se estendeu sobre a ourivesaria diamantinense, tradicionalíssima. Afirmou, porém, que ela foi iniciada por artistas portugueses. (FILHO, 1980, p. 193)

Possivelmente, foi essa conjuntura que limitou a prosperidade dos ourives em Diamantina naquela época: a recessão no comércio de diamantes e joias, a chegada das fábricas de lapidação e a presença de muitos ourives na cidade.

Eis, então, Augusto Dias de Abreu residindo em Montes Claros e se casando com Francelina Gonçalves Pereira, com ela recebendo um filho: Olímpio Dias de Abreu, que seria espírita importante na posteridade, e cuja filha, Josefina, casou-se com o médico e incomparável historiador de Montes Claros Hermes de Paula. De atributos de espírito elevados, Augusto era músico e foi um dos fundadores da União Operária de Montes Claros, vindo a falecer em 15 de dezembro de 1924.

Nelson Vianna relatou (VIANNA, 1964, p. 620) que logo que chegou a Montes Claros, Augusto fundou o primeiro núcleo de estudos e vivência espírita da cidade; isso em 1885. Mas não esteve só na empreitada. A tradição e historiadores como Henrique de Oliva Brasil (BRASIL, 1983, p. 128) indicam ao seu lado dois outros personagens que se lhe associaram para o cometimento. Trata-se de Euzébio Alves Sarmento e Daniel Pereira Costa.

Euzébio Alves Sarmento nasceu no antigo distrito de Brejo das Almas, atual cidade de Francisco Sá, filho de Manoel Alves Sarmento e Maria Duarte Sarmento. A data do seu nascimento é imprecisa. Sabe-se, entretanto, que faleceu em 3 de agosto de 1904, com aproximadamente 50 anos de idade. (VIANNA, 1964, p. 385)

Passou a infância na fazenda dos Mangues (Vaca Brava). Estudou gramática e francês com o professor Esequias Teixeira e se tornou também professor no antigo Brejo das Almas.

Após o seu casamento com Maria Balacha Miranda, transferiuse para Montes Claros e requereu exame de farmacêutico licenciado, obtendo aprovação e autorização para funcionar na cidade em setembro de 1886, através da Diretoria Geral de Higiene.

Igualmente empreendedor, Euzébio Alves Sarmento fundou a União Operária de Montes Claros, como já referido, coadjuvando Augusto Dias de Abreu, e constituindo-se em um de seus presidentes. Fundou o jornal O Operário, em 1894, do qual foi diretor e editor. Fundou ainda a primeira fábrica de sabão do município, em 1894. No mesmo ano, fundou a banda de música Filarmônica Operária. Quatro anos depois, fundou o jornal O Agricultor. Foi vereador, com posse em 2 de janeiro de 1895, tornando-se vice-presidente da Câmara dos Vereadores entre 1895 e 1897.

Através do Projeto-lei nº 04/1971, a Câmara de Vereadores homenageou Euzébio Alves Sarmento dando seu nome a uma das ruas do bairro Jardim São Luiz.

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O Capitão Daniel Pereira da Costa nasceu em Montes Claros, filho de pai homônimo e de Carolina de Paula Souto. Casou-se com Ana Cândida Dias Pereira.

Foi comerciante, fazendeiro, delegado de polícia e compôs pelo esforço do seu trabalho considerável patrimônio, principalmente em imóveis no centro da cidade, formando expressiva fortuna.

Porque não possuía filhos, no seu testamento, registrado no 1º Cartório de Ofício, constou:

É nosso desejo que o acervo destes bens seja vendido em hasta pública ou como possa alcançar melhor preço, sendo a importância dos mesmos dada a juros à União ou ao Estado e estes juros repartidos em duas partes iguais, uma para a Casa de Misericórdia e outra para distribuição aos pobres desta cidade. (VIANNA, 1964, p. 131)

Com seu falecimento, em 12 de março de 1915, aos 69 anos de idade, o legado de seus bens se destinou à Casa de Caridade de Montes Claros e aos mendigos locais, sem distinção de cor, política ou qualquer seita religiosa.

Niquinho Teixeira, antigo farmacêutico, empresário e fazendeiro em Montes Claros, em obra por ele publicada — Um caso antes dos noventa — , escreveu que Daniel Pereira da Costa, conhecido como um estudioso da Doutrina Espírita, ante a ausência de herdeiros resolveu doar todos os seus bens para uma instituição espírita na cidade de São Paulo. Mas, no cartório, quando foi apresentar seu testamento, foi demovido desse propósito pelo tabelião, seu amigo, e, ao invés disso, acabou por legar sua fortuna à Santa Casa de Misericórdia de Montes Claros e aos pobres da cidade.

Daniel Pereira da Costa também foi homenageado com uma rua no bairro Jardim São Luiz.

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Esses homens notáveis — Augusto Dias de Abreu, Euzébio Alves Sarmento e Daniel Pereira da Costa — estabeleceram o triunvirato sobre o qual se assentou o Espiritismo iniciante na cidade, instalando o seu primeiro centro espírita.

Hermes de Paula escreveu sobre esses e outros personagens das primeiras horas:

Há tempos tem sido o Espiritismo cultivado em nosso meio. Entre os primeiros convictos e honestos, podemos citar: Euzébio Sarmento, Augusto Dias de Abreu, professor Cícero Pereira, tenente Ulisses Pereira, Ezequiel Pereira, José Versiani dos Anjos, etc. Estes fundaram um centro espírita — o primeiro organizado exclusivamente
com fins religiosos e bem orientado, disseminando a boa semente. Entretanto, com o falecimento de alguns e a mudança de outros, o primitivo centro espírita fechou as suas portas.” (destacamos) (PAULA, 1957, p. 295).

Portanto, tudo começou assim!


BIBLIOGRAFIA:
BRASIL, Henrique de Oliva. História e desenvolvimento de Montes Claros. Belo Horizonte:
1983.
CALDEIRA, Wesley Soares. O Espiritismo em Montes Claros. Montes Claros: 2001.
FILHO, Aires da Mata Machado. Arraial do Tijuco, cidade Diamantina. 3ª edição. Belo
Horizonte/São Paulo: Editora Itatiaia/Edusp, 1980.
PAULA, Hermes. Montes Claros, sua história, sua gente e seus costumes. Rio de Janeiro: 1957.
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelo distrito dos diamantes e litoral do Brasil. Belo
Horizonte/São Paulo: Editora Itatiaia/Edusp, 1974.
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais.
Tradução Vivaldi Moreira. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2000.
SPIX, J. B. von, et MARTIUS, C. F. P. von. Viagem pelo Brasil – 1817/1820. Tradução Lúcia
Furquim Lahmeyer. Vol. 2, 2ª ed. São Paulo: Ed. Melhoramentos, 19-.
TORRES, João Camilo de Oliveira. História de Minas Gerais. Belo Horizonte: Lemi; Brasília:
INL, 1980, 3ª edição, volumes I, II e III.
VIANNA, Nelson. Efemérides montesclarenses. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti Editores, 1964.
VIANNA, Nelson. Serões montesclarenses. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1972.




Zélia Patrocínio Oliveira Seixas
Associada Correspondente

VIDA DE LOURIVAL SILVEIRA,
O LÔ DOS IRMÃOS PATROCÍNIO

De Monte (Azul) em Montes (Claros)
Ao mundo ele foi se revelando
De bebê chorão a jovem lutador.

Jovem que a si, por si, se foi fazendo
E um homem de belo futuro virando
Quando em Beagá viveu e amou.

Então, Brasília os braços (Asas!)
Lhe abriu, chamando-o ao encontro
De seu futuro e daquele novo Brasil.

Na UnB, que os militares invadiam,
Com o irmão estudou e se formou:
Economistas! Como a Nação pedia.

Pros EUA, com a família, então ele foi
Fazer Mestrado em Economia pra sua
Pátria querida melhor poder servir.

Produtor rural também veio a ser:
Uma fazenda no cerrado de Goiás
Outra maior nas matas do Tocantins.

Foi um agente da integração nacional
Vivente capaz de traçar o próprio destino
Sonhador em cujo peito morava a paixão!...

(Colaboração: Beto Patrocínio)

Estou falando do Lourival Patrocínio Silveira, o Lô dos irmãos Silveira, ou, melhor ainda, o Lô dos irmãos Patrocínio, filhos de Dário Dias Silveira, rio-pardense do distrito de Serra Nova, e de Edite Gonçalves de Oliveira, montes-clarense. O nascimento do apaixonado, veemente irmão na certa estava escrito nas estrelas que enfeitam as noites serenas do sertão norte-mineiro: após concluir os estudos na Escola Normal de Moc, nossa mãe foi lecionar em Rio Pardo de Minas, onde conheceu e se casou, em 1939, com nosso pai. Ali tiveram o primeiro filho, mudando-se depois, por força do ofício da professora, para Monte Azul, onde, a 14 de junho de 1944, Lô veio a nascer.

Por que o terceiro filho do casal se chamou Lourival, um nome, convenhamos, austero e pouco comum, ninguém sabe explicar. À época, como forma de homenagem, o costume era dar aos filhos que iam nascendo o nome de algum antepassado da família, como um avô ou avó, ou então o nome do santo do dia em que a criança nasceu. Como no caso do mano não era uma coisa nem outra, vai ver seu nome veio da inspiração do pai, que desde a pia batismal já moldava para o novo filho a virilidade e os louros da vitória, já que etimologicamente “Lourival” significa “do vale dos loureiros”, árvore essa com cujas folhas se faziam as coroas que na Grécia e Roma antigas eram colocadas na cabeça dos heróis e vencedores. Porém, fosse porque esse nome era grande ou sério demais, fosse porque sua pronúncia exige certo esforço labial, o mano sempre foi chamado simplesmente de Lô.


Irmãos Carlinhos, Lô e Tuca (Moc, 1945)

Lô era bebê quando a família veio de mudança para Montes Claros, onde se fixou em definitivo, e foi esta a cidade que adotou como sua terra natal. Foi lá, na nossa para sempre querida Rua Januária, esquina com João Pinheiro, que passou a infância, adolescência e começo da juventude. Desde pequeno, já mostrava os traços fortes de
sua personalidade: passional, como já dito, e por extensão autoritário, teimoso, impaciente e, quase sempre, intolerante. De fora, ele nunca levava desaforo para casa – resolvia tudo ali mesmo. Em casa, era o único que corria da palmatória do pai, o que significava apanhar em dobro quando retornava ao anoitecer. Mas, ao mesmo tempo em que era impetuoso, mostrava a ternura do seu coração, sendo também
determinado e destemido o bastante para encarar situações novas e nunca fugir dos desafios.

A vida inteira foi apegado à mãe. Quando criança, vivia de calundu e a puxar a barra de sua saia querendo colo, não vendo quanto ela era ocupada e atarefada, como professora, dona de casa, esposa, mãe de outros filhos pequenos, etc. Demorou a falar, o que já causava apreensão e estranheza. Até que um dia se desencantou, de um jeito que deu o que falar na vizinhança e que nunca foi esquecido na família. Aconteceu assim: ele estava metodicamente brincando de enfileirar pedaços de tijolo, quando mãe se aproximou e perguntou: “Filho, o que você está fazendo?”. Sua resposta na forma de uma frase inteira com sujeito e predicado – “Tô fazendo fila!” – foi surpreendente, porque até então nunca ninguém tinha ouvido dele sequer um balbucio. Depois disso, nunca mais foi calado. O encanto, para não dizer alguma cisma naquela cabecinha, tinha se desfeito.

Por falar em cisma, seu forte temperamento fazia dele uma criança não muito sociável. Meio respondão, às vezes emburrava nos cantos e rosnava quando seus irmãos e primos o provocavam. Por essas e por outras, logo lhe deram o apelido de “lobo mau” e, quando assim chamado, ficava ainda mais enfurecido. Já quando estava para brincadeiras, o que mais gostava era de correr, jogar bola de gude e brincar de esconderijo. Na época das chuvas, nem bem parava de chover, corria para fora de casa e se punha a fazer barragens, represando a enxurrada que escorria pela rua – rua que era de terra, conforme por muitos anos foi a Rua Januária. Decididamente, fazer barragens era uma paixão e uma especialidade sua, tanto que, num canto ali qualquer, dava seu jeito de fazê-las também nos rios aonde ia em piqueniques.

Aos sete anos, Lô foi cursar o primário no Grupo Escolar Carlos Versiani, onde os irmãos mais velhos já estudavam (na época não havia pré-escola). De cara se deu como sendo a própria mãe sua professora. Aí o bom exemplo não podia faltar, o que gerou trabalhoe preocupação. Era cobrança lá e cá! Como não chegava a ser aluno nota 10, abaixo de 7 também não podia ficar.

A partir da idade escolar, seu espírito moleque e aventureiro desabrochou-se. Ao encontrar mais espaço para liberar a torrente de seus impulsos, o menino foi se encontrando e se entregando às suas vontades, interesses e aptidões. Mais do que nas traquinagens de rua, era nas incursões pelo mato, de posse de sua atiradeira, alçapão e anzol, e escapulindo das vistas da mãe, quando a ordem era fazer o dever de casa (tarefa escolar) e molhar as plantas (obrigação doméstica), onde mais se realizava. Amigos com quem se lançar nessas aventuras, assim como matas cerradas aonde ir, ali nos arredores e no alto das serras de Montes Claros, não faltavam. O bando que então se formava era tanto de caçadores (de passarinhos), como de pescadores (de piabas, traíras, lambaris, bagres e outros mais), num tempo em que os rios Melo e Verde eram caudalosos, capazes de tragar vidas, só não acontecendo porque se aprendia a nadar na marra. O mano gostava também de penetrar nas grutas da Lapa Grande e Serra Pintada. Todos tinham medo, mas ele se aventurava! O que procurava? Com certeza, era muito mais alguma onça pintada do que a beleza geológica daquelas cavernas.

Era patente a felicidade que essas aventuras lhe proporcionavam. Às vezes, no entanto, voltava muito tarde, quando em casa mãe e pai já estavam aflitos de preocupação. Então, para escapar da surra, ele batia na janela do quarto de nós suas irmãs, o qual ficava de frente para a rua, pulava sorrateiramente e se recolhia na cama a fingir sono profundo. Trabalheira geral sobrava para nós mulheres, que tínhamos a obrigação de limpar, secar e fritar tanta piaba. Contudo, não há como negar que as fieiras de peixe trazidas pelo mano sempre complementavam a refeição da família, tornando-a mais nutritiva. E já que era assim e havendo ele conseguido evitar a surra na noite anterior, na hora em que pai mais estava nervoso, o castigo acabava se tornando mais brando.

Entretanto, melhor de tudo para ele, como de resto para cada um(a) de nós, era quando, pelo pai, lhe era dada a oportunidade de passar as férias escolares em... em... Serra Nova!!! Aquele lugar de sonho, no sopé da Serra Geral e pleno de belezas naturais, era o passeio mais disputado da família, isto porque, já por falta de lugar no carro, nunca dava para ir todo mundo. Lá era onde Vó Dadinha, mãe de pai, morava e onde ele, em paralelo a sua profissão de caixeiro-viajante, mantinha alguns pequenos empreendimentos. O centenário povoado possuía uma rua só, oferecendo dois rios para se banhar (vinham da serra, havendo cachoeiras!) e toda uma vasta e verdejante amplidão a explorar. Quando se via ali, Lô se soltava ainda mais, mergulhando de cabeça nos poços dos rios Bomba e Suçuarana, e em tudo mais que fazia, como, num passeio que era proibido, subir a serra a caçar animais rasteiros. Por gostar de dar seus mergulhos pelado, ganhou fama de “Peladão”; outra fama, esta dos filhos de Dário em geral, era de que eram “patos”, de tanto que eram vistos nadando nos rios. Mas em Serra Nova também era preciso trabalhar, e Lô bem que ajudava. Ora na lida da roça. Ora tangendo a parelha de bois que faziam o moinho girar, espremendo a cana-de-açúcar usada na fabricação de rapadura. Ora também ajudando a fazer farinha de mandioca e goma. Se sentia identificado e realizado com tudo e até dizia que era ali que queria viver.

A verdade é que Lô sempre teve apreço pelo trabalho e isto nele se manifestou desde tenra idade. Como adorava assistir às matinês de cinema no domingo, mas raramente tinha dinheiro para comprar o ingresso, por iniciativa própria ofereceu-se aos respectivos proprietários para ser o baleiro dos cines São Luís e Coronel Ribeiro. Pois não é que conseguiu! Enquanto a sessão não começava lá estava ele, com o caixote de balas e goma de mascar pendurado ao pescoço, a circular pelo salão, oferecendo sua tentadora mercadoria ao público. Para ele o lucro era duplo, pois, além de ganhar seus tostões, assistia aos filmes de graça. A depender da classificação etária do filme, o trabalho se estendia até a noite. Em casa, seu retorno era esperado com pois nunca deixava de trazer bala para mãe (seu xodó), de repente sobrando também para nós irmãs e irmãos. Era, sem dúvida, o brotar do Lô provedor e patrocinador, dois traços que sempre foram marcantes em sua personalidade, conforme muitos, tanto de dentro
como de fora da família, podem atestar.

Havendo entrado na puberdade, fase da vida marcada por importantes transformações, passou aos doze anos a cursar o ginásio no Colégio Normal Oficial Professor Plínio Ribeiro – outro nome para a tradicional Escola Normal de Montes Claros e atual Escola Estadual Professor Plínio Ribeiro –, localizado à época no histórico sobrado que hoje abriga o Museu Regional do Norte de Minas. Naquele que desde sempre foi um reduto de grande efervescência cultural, artística e educacional, por onde muitas cabeças pensantes da terra passaram, na certa ele muito aprendeu e muitas emoções viveu. Veneração, pode-se dizer, ele tinha por certos notórios, e rigorosos, professores da época, nomes como Rameta (Matemática), Francolino (Ciências), Pedro Santana (História), Amâncio (Latim), Dulce Sarmento (Música), Ivone (Português), Terezinha Guimarães (Francês), que entraram para a história da cidade como exemplos admiráveis de amor e dedicação ao magistério. Se então o Lô gostava das Letras, eu não sei, mas de Matemática e História os indicativos eram que sim.

Continuava com as aventuras no mato, mas agora estas tinham de dividir a vez com novos interesses, como cinema, esporte, circo. Os gêneros cinematográficos de sua predileção eram bangue-bangues e épicos históricos, as comédias românticas também tendo vez. Na Praça de Esportes, onde por extensão escolar se praticava Educação Física, era frequentador assíduo da piscina olímpica, revelando-se um exímio nadador. Já o lendário “Campinho do Bariri”, o qual ficava próximo de casa, na junção da rua Januária com a Coração de Jesus, onde à época a rua Januária terminava, era onde ele jogava suas peladas, estas congregando a moçada da vizinhança e acontecendo geralmente no fim da tarde. E, quando algum circo chegava à cidade e o carro passava anunciando “Hoje tem espetáculo? Tem sim senhor!”, ele era dos primeiros a ir assistir, nem que para isso, quando falto de grana, tivesse de entrar passando por debaixo da lona. Problema que aí, na nossa casa, pai já o estava esperando para dar-lhe uma sova. Fazer o quê... Ele sabia que estava errado, mas o fascínio pelo circo era mais forte que ele, tanto que, segundo dizia, queria ser domador de leões.

O rapazinho agora se juntava a grupos que saíam à noite com o objetivo de paquerar, aqui numa esquina, ali numa praça, ou onde mais, nas redondezas, houvesse garotas dando sopa. De sua parte, maquiadas, perfumadas, bem vestidas, lá vinham as meninas, também em grupos, desfilando como se estivessem numa passarela – e não, consoante diziam tentando disfarçar, “apenas fazendo o footing”. À sua passagem, rapaz nenhum ficava calado, com uns proferindo galanteios e outros assoviando, fazendo fiu fiu. A mana Dade tinha umas amigas bonitas e era principalmente na direção delas que o Lô dirigia seu olhar. Não havia contato físico, era mais na troca de olhares (flerte) que se manifestava a atração e a reciprocidade.

Também acontecia de a molecada da rua se juntar para formar trincas belicosamente territoriais, que como tais se empenhavam em manter livre de penetras a área que consideravam ser seu território. Havia a trinca da Rua Januária, da Cula Mangabeira, da Tiradentes, da Praça Coronel Ribeiro e outras mais. Cabra macho declarado, ainda
mais ele que adentrava grutas sozinho e pensava tornar-se domador de feras selvagens, era o Lô quem sempre comandava a trinca da sua rua, às vezes coligada com as de ruas próximas, para o que desse e viesse. O estopim maior era o surgimento de estranhos cobiçando as meninas do pedaço. Podia até não se partir para a violência, mas havia enfrentamentos e disputa de poder. Era a masculinidade dos ainda meninos querendo se estabelecer.

Logo o ginasiano passaria a dividir o estudo com o trabalho. Por volta dos treze anos, Lô arrumou emprego na Fábrica de Ladrilhos do Seu Odorico, na esquina da Rua Tiradentes com Dr. Veloso. Pessoa generosa e de espírito aberto, Seu Odorico sempre o estimulava à prática do ofício e ali ele exerceu funções que variavam de entregador
de mercadoria (office boy) a vendedor e auxiliar administrativo. Da remuneração que recebia, nunca faltava um dinheirinho para ajudar a mãe nas despesas da cas
a.

Ao se desenvolver fisicamente, tornou-se um rapaz bonito e charmoso, além de vaidoso. O perfil à la Alain Delon mais os olhos repuxados e empapuçados davam-lhe um aspecto estiloso – em casa, fazendo troça, os irmãos lhe diziam: “Você abre o olho, que você não é Tião Camurça”, numa referência ao conhecido montes-clarense o qual tinha olhos empapuçados e bastante fechados. A cabeleira vasta, às vezes dosada com brilhantina, lhe garantia um topete sensual, que ele capitalizava apresentando-se perante o público feminino sempre perfumado e bem vestido. Adorava dançar ao som da música orquestrada e era pé de valsa nas festas e bailes a que tinha acesso. Como muitos outros jovens da época, aguardava com ansiedade a manhã do domingo para se encontrar na Boate da Praça de Esportes. Boate à luz do dia pode hoje soar estranho, mas era a pura verdade. A tradicional hora dançante matutina começava às onze horas, após a missa dos jovens na igreja Matriz, e, na alegria do valseado e da conversa fiada, se estendia até às três da tarde. Também havia hora dançante no Clube Montes Claros e os clássicos Bailes de Debutantes do Automóvel Clube, onde ele sempre era convidado a compor par com as colegas e amigas. Entretanto, embora cobiçado pelas meninas, Lô não chegou a se mostrar galanteador, nem muito namorador. Seus relacionamentos não iam além de namoricos mais ou menos ligeiros, se bem que mesmo assim ainda hoje há em Moc quem declare paixão eterna por aquele bonitão, que realmente era de encher os olhos.

NA SUA ESTRADA DA VIDA, BELO HORIZONTE

Enquanto isso, naquele lar de classe média de número 34 da Rua Januária, número que anos depois passaria a 435, por força da expansão da Rua Januária ao encontro da Avenida Mestra Fininha, a família não parava de crescer, aumentando o número de bocas que alimentar e impondo decisões. Certo também era que, ao ser registrada, a criança teria “Patrocínio” em seu nome, tal prática se configurando como uma devota homenagem de pai a Nossa Senhora do Patrocínio, padroeira de sua venerada Serra Nova. Tinha sido assim com os dez primeiros filhos, e não seria diferente com os dois últimos, que nascem, respectivamente, em 1960 e 1962.

Mil novecentos e sessenta é também o ano em que Lô, com dezesseis anos de idade, conclui o ginásio. Então, mais como necessidade do que aspiração, a emancipação financeira se impõe para ele. Era preciso procurar a capital do estado, onde as oportunidades de trabalho eram melhores e onde também se poderia continuar a estudar, com perspectiva de acesso ao ensino superior. Confiante no potencial daquele seu filho, tantas provas do mesmo ele já dera, o pai assim determina, a mãe o entrega para Deus e para Belo Horizonte lá vai o Lô.

Era, sem dúvida, um grande desafio para o mano, que afinal não passava ainda de um adolescente. Então, com cerca de setecentos mil habitantes e com sua população praticamente dobrando a cada década, Belo Horizonte era já uma grande metrópole, podendo num primeiro momento mostrar-se hostil para quem, de “mala e cuia”, chegava vindo do interior. Começava para o Lô, de um modo mais cru e com quase tudo quanto lhe era mais querido tendo ficado para trás, o salve-se quem puder, que na cidade grande é comumente anônimo, cada pessoa não passando de um rosto a mais na multidão. Mas pelo menos em Beagá a família tinha parentes, além de contatos.

De início, Lô fez morada na casa da Tia Judite, que era o portal de entrada dos Oliveira (família pelo lado materno) na capital. Quanto a emprego, as boas relações de pai com a empresa H. Mascarenhas, da qual como caixeiro-viajante era representante comercial, garantiramlhe uma colocação no escritório da Companhia Fabril Mascarenhas, conhecida indústria do ramo têxtil. Já quanto aos estudos, estes teriam
continuidade no Colégio Anchieta, com o Lô agora matriculado no antigo curso científico. Nesse embalo, o mano não tardou em deixar a casa da tia para trás, indo morar na pensão de propriedade de uma senhora, a quem ele viria ainda a ser especialmente ligado. Uma das vantagens da pensão é que nela estaria na companhia de colegas seus de colégio que também eram conterrâneos do norte de Minas.

Enquanto viveu em Belo Horizonte, e foram quatro anos, Lô se manteve trabalhando na Cia. Mascarenhas. Ali ele foi uma revelação, numa demonstração do profissional de grande valor que ele sempre foi. Tendo iniciado no cargo de auxiliar de escritório, o mais elementar, em pouco tempo, aos dezenove anos apenas, já era o chefe do escritório! Como a meteórica carreira foi possível? Graças exclusivamente a certas qualidades inatas do Lô, tais como capacidade de trabalho e de organização, espírito de liderança, zelo, interesse, comprometimento, inteligência, sagacidade. No labor do dia a dia, a prática, mais que a teoria, o levou a dominar os princípios de administração e contabilidade que o cargo requeria.

Trabalhando e estudando (à noite) e mesmo assim não deixando de fazer suas farras, precisou de um ano a mais para concluir o ensino médio, o que se deu em 1964, quando então era aluno do Colégio Afonso Celso. Vida intensa aquela: ao mesmo tempo em que bastante ocupada, também, conforme os jovens mais prezam, bastante livre. Embora fosse muito bem tratado na pensão, resolvera junto com os conterrâneos ali residentes fundar a “República dos Inocentes”, a qual entrou para a história. Sempre sob seu comando como gestor e embaixador, nela residiram vários futuros doutores do norte de Minas, a exemplo de Péricles dos Anjos, Antônio Maia, Hélio Guimarães, João Jaques e Artur Gomes, os três primeiros tendo também se tornado políticos. Muito sabidos todos. Além de poderem estar completamente à vontade, a república era para eles um jeito de ter na capital uma extensão familiar e de não perder as raízes e as boas tradições da terra natal. Conta-se até que na despensa da casa nunca faltavam guloseimas enviadas pelas saudosas mães, menos ainda a boa cachaça do norte de Minas, para isso estando ali Péricles dos Anjos, providencial representante da cidade de Salinas. A consequência da fraternal e não raro etílica convivência foi que aqueles “republicanos inocentes” nunca mais deixaram de ser amigos.

Mesmo respirando ares metropolitanos, Lô não se desligava de seus afetos e terra de origem. O chamego com sua mãe sempre foi forte e seu compromisso familiar nunca deixou de existir. Assim que podia, pegava o trem para Montes Claros, onde sua chegada era esperada com ansiedade, sendo motivo de grande alegria. Também porque sempre trazia presentes e agrados de coisas que, à época, só existiam na capital mineira, como maçãs importadas da Argentina, bombons das Lojas Americanas, eletrodomésticos, sendo a mãe a primeira a ser presenteada. A casa ficava ainda mais alegre quando chegavam os primos e amigos para matar as saudades. Com estes ele então, não perdendo o costume, combinava as próximas pescarias.

Em Belo Horizonte, chegaria para ele o tempo de amar de verdade! Só lhe restou então assumir com seriedade o namoro com a... filha da dona da pensão. Sim, a Dirce, filha da Dona Coty, senhora muito severa que tinha duas filhas e que com toda a sua autoridade não permitia que nenhum rapaz na pensão ousasse bulir com elas. Por isso, ele só se revelou e pediu a Dirce em namoro quando saiu da pensão.

Para Lô, segundo suas próprias revelações, Beagá foi o portal onde seu futuro se descortinou. Ali, com a luta por se fazer a si mesmo e se tornar independente, custasse quanto custasse (custando-lhe a meu ver um amadurecimento precipitado), foi onde ele achou seus meios, criou suas defesas, ampliou suas aspirações e se descobriu em suas potencialidades. Foi também onde encontrou sua futura esposa e mãe de seus filhos – filhos que ele faria questão que nascessem em Belo Horizonte, mesmo quando ele e a Dirce já não moravam mais lá.

PULSANDO NO PLANALTO CENTRAL, BRASÍLIA ATRAÍA...

Não sem esforço, já que também trabalhava em tempo integral, o diploma do ensino médio havia sido conquistado, mas... e agora? Continuar crescendo e galgando postos no trabalho, ou partir com força e vontade para um curso superior? Nas universidades públicas, e em Belo Horizonte havia a UFMG, os cursos bem que eram gratuitos, só que tinha um porém: eram diurnos, e de dia ele trabalhava. Largar então o emprego? Complicado... Os pais não tinham como sustentálo e, mesmo que tivessem, ele não permitiria. Afinal, aprendera a se virar por conta própria e isso, por uma questão de honra pessoal sua, não tinha mais volta. Contudo, como não seguir adiante com os estudos, se neles estava a chave para um futuro melhor? Cérebro ele tinha! (De fato, “descerebrado”, uma metáfora que o Lô gostava muito de usar, ele não era.) E, já que tinha cérebro, o jeito era dar um jeito de continuar estudando. Em Belo Horizonte, onde seria mais fácil e cômodo, por ali já contar com toda uma rede de amigos e contatos, sem falar no emprego e no namoro, o qual já estava virando coisa séria? Ou, quem sabe, tomar outro rumo?... E que carreira escolher? Aquelas mais tradicionais e ao gosto dos pais, como Medicina, Direito, Odontologia, Engenharia? Não, essas não, nenhuma delas condizia com suas aptidões.

E foi, não só na depuração do provável com o viável, mas também nas suas visões futurísticas, que lhe veio à mente uma carreira até então pouco conhecida e procurada: de Economista. À época, o Brasil passava por uma efervescência de ideias políticoeconômicas e, no processo de reforma, buscavam-se estratégias mais desenvolvimentistas para tirar o país do atraso. Precisava-se trabalhar com política de resultados, e a Economia, como ciência, já era reconhecida como apta a fornecer os conhecimentos necessários para a formulação de planos de ação e adoção de medidas, assim como para o controle e avaliação de resultados.

Sem vacilar, Lô vislumbrou a carreira a abraçar e convidou o mano Zé. Zezinho, para quem ele já havia arrumado emprego na Mascarenhas (de escriturário), havia se mudado para Belo Horizonte em setembro de 1964, em busca de um novo rumo para sua vida, após ter passado quase oito anos em seminários, em Montes Claros e Diamantina, estudando para padre. Os dois então descobriram que na nova capital federal a recém-implantada Universidade de Brasília não só oferecia o curso de Economia (Ciências Econômicas), como o mesmo era pontuado com cinco estrelas, a pontuação máxima. Pois em dezembro de 64 lá estavam, prestando o vestibular. Passaram de primeira, com o Zezinho, numa proeza de que até hoje ele se gaba, por ser à época fraco em Matemática, se classificando em terceiro lugar – uma vez que ia virar economista, o ex-seminarista tratou então de sanar sua deficiência em Matemática tornando-se professor de... Matemática! Com eles estava o conterrâneo Luiz Fernando Sarmento, amigo muito querido do Lô e em quem ele reconhecia uma grande inteligência.

Lô mudou-se para Brasília no início de 1965, após demitir-se do emprego e pedir tempo e paciência à namorada para o amor à distância. Naqueles idos, recém-inaugurada e ainda em construção, Brasília apresentava-se inóspita e distante. Denominada de cidade do cimento armado, difícil mesmo era alguém declarar amor por ela. “Candango”, uma palavra que se usava muito ali em referência aos trabalhadores da construção da nova capital, não deixava também de significar “pioneiro”, “desbravador”, “pessoa confiante no progresso”. E o novo candango Lô tinha muito a ver com este perfil! De imediato ingressou na Universidade de Brasília, com moradia em seu alojamento de estudantes, e, por um período significativo, a universidade foi o seu
mundo. Ali fez morada, estudou, trabalhou, se politizou, fez amigos e virou economista, sua profissão até se aposentar.

Preliminarmente, para se ter ideia de quanto o Lô foi impactado na sua vida daí por diante, cabe uma referência ao estilo inovador e à ebulição política que aracterizavam a UnB nos anos 60. Inaugurada em 1962, a Universidade de Brasília nasceu dos planos visionários do antropólogo Darcy Ribeiro, gênio montes-clarense que definiu as bases da instituição, e do educador Anísio Teixeira, que definiu seu modelo pedagógico, sem se esquecer de Oscar Niemeyer, que traçou sua arquitetura. Fugindo das estruturas convencionais das universidades de então, a UnB foi concebida com o propósito de entrelaçar as diversas formas de saber e formar profissionais engajados na transformação do país. Por esta característica e por sua localização nas imediações do poder, foi uma das universidades mais atingidas durante o regime militar, com invasões históricas e prisões constantes de professores e alunos acusados de subversivos. Em termos de ensino, com bases mais flexíveis, o período letivo era semestral com as disciplinas moldadas no sistema de créditos, o que permitia ao aluno
programar seu próprio calendário, desde que as matérias escolhidas atendessem os pré-requisitos exigidos. Em termos da estrutura física, o câmpus era uma verdadeira cidade, oferecendo amplas estruturas de ensino, pesquisa e extensão, além de alojamentos e áreas de lazer.

Na UnB, Lô estudou de 1965 a 1968, até graduar-se. Iniciou o curso já como bolsista de graduação, o que lhe assegurava a sobrevivência, cabendo-lhe em troca prestar serviços à universidade. Passou, por exemplo, o ano de 1967 trabalhando na elaboração de apostilas e pesquisas dirigidas junto ao Departamento de Economia, com carga semanal de trabalho de vinte horas. Até alcançar os estágios remunerados, também não deixaria de fazer “bicos” como monitor e instrutor em treinamentos e seminários. Os anos iniciais exigiram dele grande dedicação aos estudos, para nivelamento de conhecimentos, domínio de Matemática, Estatística, familiarização com matérias até então desconhecidas, como Metodologia Científica, Sociologia. Um privilégio, que não deixava de ser também um desafio, era poder ali ser aluno de mestres de renome, como um Lauro Campos, Aliomar Baleeiro, Bento Bulgarin, Dércio Munhoz, entre outros.

Todavia, conforme já se fez menção, aqueles definitivamente não eram tempos de normalidade, com a UnB, desde que os militares haviam tomado o poder em abril de 1964, estando sujeita a invasões de seu câmpus por tropas policiais militares. Em outubro de 1965, com o Lô ali presente, isso voltaria a acontecer, mais uma vez causando grandes transtornos e agravando um quadro que já não era de pleno funcionamento da universidade. Então, docentes e estudantes estavam em greve em protesto contra a demissão de três professores acusados de subversivos. Sob a invasão, a UnB ficou interditada, não se podia entrar nem sair, qualquer aglomeração de pessoas era logo dispersada. Com a ocorrência de novas demissões por suspeitas de subversão, 73% dos docentes pediram demissão, inconformados com as arbitrariedades que se vinham cometendo. Este clima de instabilidade, que seriamente prejudicava a vida acadêmica, se manteve por todo o tempo em que o Lô estudou e morou na UnB e, segundo ele, era comum os estudantes acordarem nas madrugadas com baioneta na cabeça e ordens de desocupar o recinto. Vivenciou também a violenta invasão ocorrida em agosto de 1968, em que mais de quinhentas pessoas foram detidas e um estudante foi baleado. Então, mesmo sem ser militante estudantil, Lô teve que entrar no camburão e provar sua inocência, sorte diversa tendo o Zezinho, que, por presidir o Diretório Acadêmico de Ciências Jurídicas e Sociais da UnB, ficou preso até averiguação.

Em outubro de 1967, Lô já começava a fazer estágio supervisionado como estudante de Economia, iniciando-se na carreira desde aí. O estágio era no Ministério da Agricultura, onde permaneceria como estagiário até o fim do curso, passando por áreas importantes, como administração orçamentária e financeira e estruturas de planejamento agrícola.

Paralelamente às aulas e ao estágio, não perdia os programas de extensão universitária, por meio dos quais tinha acesso a seminários e cursos importantes nas áreas de economia, brasileira e internacional, e agronegócio. Foi então que surgiu uma oportunidade de ouro, a qual ele não deixou passar. Primeiro foi preciso enfrentar uma concorrida seleção. Ao ser bem-sucedido, integrou um grupo de representantes da UnB que, no primeiro trimestre de 1968, foi a Washington, capital dos Estados Unidos, para participar de um seminário patrocinado pelo Departamento de Estado daquele país. Durante dois meses, representantes de universidades de vários países debateram sobre programas acadêmicos na American University, Catholic University e Howard University, ocorrendo também debates com oficiais do governo e líderes da sociedade americana. Ao ficar bem impressionado com tudo o que viu e ouviu, Lô firmou propósito de retornar aos EUA para aperfeiçoamento dos estudos de Economia.


Lô (primeiro à esq.) e colegas da UnB em Washington (1968)

A viagem, que teve passagem pelo México, foi a primeira experiência internacional de um membro da família e, em nossa casa em Montes Claros, nós todos estávamos muito orgulhosos, e mais ainda ansiosos para que ele aparecesse, nos contando tudo sobre o “fantástico” país do Tio Sam, conforme por fotos o mesmo nos parecia ser. Claro que ele não demorou a dar as caras e óbvio que não chegou sem estar trazendo presentes e lembranças dos dois países. Pelo que ainda me lembro, eram coisas como um par de sombreros ornamentais, um cinzeiro de bronze enorme, do tamanho de um
prato de comida (à época fumar era charmoso), camisas, perfumes e até um secador de cabelo para as mulheres. Sim, também aquilo que no Brasil do interior estava ainda no começo, estando em minoria as casas que já a possuíam: uma televisão! A marca era Mitsubishi e foi preciso usar um transformador de voltagem.

Por falar em energia, a daquele dinâmico universitário era tal, que ele ainda achava tempo e gás para se meter em aventuras empresariais. De fato, na certa se valendo da experiência interrompida na Fabril Mascarenhas, entre 1965 e 1968 Lô esteve associado a dois colegas, um dos quais o Luiz Sarmento, numa pequena fábrica de camisas de malha, que se chamou Incomalhas Indústria e Comércio de Malhas. Mediante financiamento, os três sócios adquiriram e instalaram os equipamentos de fiação e começaram a confeccionar camisas masculinas de cores vivas e de alto padrão de qualidade. Não se sabe bem por quê, o negócio não vingou, mas, enquanto houve produção, as camisas chegaram a ser vendidas inclusive em Belo Horizonte e Montes Claros, contando nessas praças com amigos e irmãos (como eu em Moc) como representantes comerciais e vendedores.

Por essa época, quando Lô, Zezinho e Carlinhos vinham para casa, onde se juntavam ao Tuca e amigos, a farra parecia que não teria mais fim. Tuca, o mais velho, figura conhecida na cidade, como goleiro do time do Cassimiro de Abreu e gerente da Brahma, tinha um senso de humor que era simplesmente genial. Dele ninguém ficava perto que não fosse rindo. Os irmãos pequenos participavam da farra fazendo o papel de garçons. Eles que iam à cozinha buscar a cerveja e os tira-gostos que a mãe e as irmãs preparavam. Em troca, pediam aos irmãos mais velhos que fizessem o “muque”, pois tinham curiosidade em saber qual era o mais forte, mesmo que fosse só na aparência. Aí o Lô gostava, pois tinha o bíceps bem desenvolvido desde o tempo em que, por correspondência, praticou halterofilismo em Beagá.

Após intensos quatro anos, o curso na UnB se aproximava do fim. Então chegou o dia 13 de dezembro de 1968, uma data histórica para Lô e Zezinho, sem falar que também para o Brasil. Era o dia da cerimônia de formatura dos dois, o Zezinho, orador da turma, com o discurso já pronto. Azar que também foi o dia em que se baixou o AI-5, que entre outras infâmias proibia os estudantes de discursar na colação de grau. Zezinho ainda manteve o discurso no bolso, acreditando que poderia ter chance. Mas não, o cerimonial estava irremediavelmente prejudicado. Mesmo sem discursos, mas solenemente de toga e beca, a formatura foi emoção para todos: para o Lô e o Zezinho, pelos obstáculos vencidos e louros alcançados; para os pais, pelo sonho dourado que era verem os primeiros filhos formados e inclusive já encaminhados na carreira de economista; para os irmãos, pelo exemplo e pelo canal aberto na capital federal; para os amigos, por se sentirem parte integrante do processo.

Diploma na mão, novas vontades a colidirem entre si. Vontade de fazer especialização em economia agrícola nos Estados Unidos. Vontade de continuar trabalhando no Ministério da Agricultura, onde já criara vínculo e se lhe oferecia uma carreira promissora. Vontade de casar e formar família. Vendo de longe o filho assaltado por dúvidas, o pai, que tinha facilidade de expressão, mesmo tendo estudado somente até o terceiro ano primário, escreve-lhe uma carta em 16 de julho de 1969, aconselhando:
Lô: Conselho de pai sempre é bom. Peço não deixar seu emprego precipitadamente, reflita bastante, hoje há dificuldades em todos setores, ninguém vive satisfeito com o que tem. Vamos conformar com aquilo que temos, que a fase é de transições. Sendo que você pretende se casar, acho difícil fazer curso no
estrangeiro, a não ser que leve a esposa também. Você tem possibilidades de ganhar e aprender aqui mesmo no Brasil. Não quero com isto, porém, cortar os seus planos. Às vezes eles estão acima dos meus conhecimentos e do que penso.1

TALENTO NOVO NA MÁQUINA ADMINISTRATIVA FEDERAL BRASILEIRA

Seguindo o conselho dado pelo pai, Lô resolveu ficar onde já estava, deixando em banho-maria seus outros sonhos e projetos. Já reconhecido como economista no Ministério da Agricultura, foi posto agora a trabalhar como assessor econômico na Inspetoria Geral de Finanças. Nessa qualidade, e já que possuía visão inovadora, capacidade de organização e domínio de redação, compôs a equipe responsável pela reforma administrativa do MA nos anos 1968-1969, cujo propósito era a sistematização e implementação de normas de administração financeira, contábil, de auditoria fiscal e de auditoria das tomadas de contas do ministério. Integrou ainda, ora como assessor, ora como coordenador, importantes grupos de trabalho encarregados de atender a demandas de política pública. Veio a participar assim da fusão do então Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (Ibra) com o Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário (Inda), a qual deu origem ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), em 1970. Pois para o novo órgão foi cedido com a missão de contribuir na sua viabilização, o Incra sendo até hoje o órgão responsável pela política agrária nacional.

Durante o tempo em que permaneceu no Incra (1970-1973), foi Assessor da Presidência, se ocupando mais que tudo com planejamento estratégico. Nas décadas de 60 e 70, na esteira de um discurso nacionalista contra a internacionalização da Amazônia, os militares projetaram grandes obras, como a Transamazônica, e criaram diversos programas para assegurar a soberania brasileira na região, encarregando-se o Incra de implantar ao longo das rodovias projetos de colonização e consequente ocupação do território. Nesse contexto, coube ao Lô a função de chefe do Grupo de Trabalho e Planejamento da Colonização da Amazônia, cumprindo-lhe deslocarse frequentemente, para realização de pesquisas in loco e participação em debates intergovernamentais. Grande ênfase deu-se ao Projeto Integrado de Colonização de Altamira, cujo modelo organizacional proposto em agrovilas, agrópolis e rurópolis veio a ser adotado como modelo para ocupação de grandes espaços. Também no âmbito dos
programas especiais de desenvolvimento regional criados à época, a exemplo do PIN, Proterra, Provale, Poloamazônia, ao Lô foi delegada a missão de articulador do Programa de Integração Nacional (PIN) no âmbito do Ministério da Agricultura, onde atuou na programação e distribuição de recursos.

Ocioso dizer que para o novel economista a vida não se resumia ao trabalho. Fatos que o afetavam diretamente, tristes uns, alegres outros, vinham acontecendo... Assim, no dia 16 de dezembro de 1969, de infarto fulminante, morria o nosso pai aos cinquenta e nove anos de idade, justo no dia da formatura, em Medicina, de seu segundo filho, Carlos Patrocínio, estudante em Uberaba. Uma cruel ironia porque, já com dois filhos formados em Economia, o que mais desejava era ter um filho médico. E, dali a menos de quatro meses, em outro inesperado e terrível abalo, ocorrido a 3 de abril de 1970, morria de acidente automobilístico com apenas vinte e nove anos o Tuca, numa curva da estrada de Januária a Montes Claros. Morte absurda e ironia maior ainda, pois quem mais dominava as estradas do sertão norte-mineiro era ele próprio, nos tempos em que optou por ser motorista do pai caixeiro-viajante. No pesaroso abraço a mim dado, Lô expressou a sua dor:

— Morreu a alegria da casa. Seremos nós capazes de um dia voltar a sorrir?

Cada um vivia ainda a sua dor e luto quando, meses depois, foi possível voltar a sorrir de novo, graças a um acontecimento em torno do qual, aliás, havia grande expectativa, em especial por parte de um certo alguém. Como àquele namoro à distância que já durava sete anos só cabia um desfecho feliz, Lô e Dirce, em conformidade com a tradição mineira da época da filha só sair de casa após a jura no pé do altar, se casam em Belo Horizonte, no dia 19 de setembro de 1970. A cerimônia na Igreja São Pedro foi simples, mas clássica e descontraída, iluminada com a alegria dos familiares e amigos mais próximos. A casa própria em Brasília, um apartamento de três quartos localizado na Quadra 404 da Asa Sul, já estava adquirida. Não era à toa que o Lô vinha trabalhando muito e poupando, com um detalhe importante: ele como funcionário público sempre foi bem pago, conforme ele próprio reconhecia e até se gabava.

O apê da 404 Sul foi, no entanto, apenas o começo. Chegaria o tempo, e não demoraria muito, em que o funcionário de alto nível exerceria cargos de direção que lhe davam direito de ocupar imóvel funcional. Em consequência, foram muitas as mudanças para lá e para cá em Brasília, sua residência ora sendo na Asa Norte, ora na Asa Sul, ora no Lago Sul etc. Uma coisa, no entanto, nunca mudava. Zeloso para com os irmãos e generoso com os parentes, especialmente os mais humildes, Lô, aliado à hospitalidade da Dirce, sempre fez da sua casa um espaço de acolhida em Brasília. Espaço de acolhida e também de recepções: almoços, jantares, lanches, comemorações, a comida e a bebida sempre muito fartas e da melhor qualidade. Simplesmente inesquecíveis, ainda hoje dando água na boca, as feijoadas da Dirce e os churrascos do Lô. O mano adorava a comida caseira, mas era exigente, tudo tinha de estar perfeito, senão reclamava.

Quando é fevereiro de 1972, seu primeiro filho nasce: Marco Antônio, sendo o “Antônio” uma homenagem a Tuca, cujo nome era Patrocínio Antônio. Sua filha Ludimila nasce em setembro do ano seguinte.

Mesmo tendo-se feito chefe de família e não obstante as responsabilidades do trabalho, Lô não se desligava de sua mãe e irmãos mais novos, crescendo em Montes Claros órfãos de pai. Apesar da assistência que eles, filhos mais velhos, davam à distância, inquietavam-no as dificuldades e agruras que a mãe, sem o marido, vinha enfrentando para criar seus cinco filhos menores, um dos quais, o Tião, já se encontrava em Brasília. Inquietava-o também o futuro dos irmãos, que precisavam de oportunidades de estudo e trabalho – como eu mesma, que, apesar de já estar no exercício do magistério primário, finalizava o curso de Pedagogia na Fafil sem perspectiva de ascensão funcional no limitado mercado de trabalho da Montes Claros de então. Articulado com o Zezinho, Lô criou os meios de moradia e de acesso escolar, convenceu mãe, que resistia a sair de seu canto e se mudar, e viabilizou a mudança de todos para Brasília. Já com emprego no Incra como Técnica em Educação, articulado por ele, eu parti na frente, e, dois meses depois, em fevereiro de 1972, foi mãe com o restante da prole. Graças ao solidário gesto, novos e amplos horizontes se abriam para todos nós.


MESTRE EM ECONOMIA AGRÍCOLA

Em janeiro de 1974, o sonho do seu mestrado nos Estados Unidos se pôs em marcha. O Ministério da Agricultura o liberou pagando-lhe os salários e o governo americano lhe concedeu uma bolsa de estudos pelo Usaid. Com a esposa, os dois primeiros filhos ainda bebês e a mana Graça, que tinha completado dezoito anos e arranhava um inglês, Lô partiu para Stillwater, em Oklahoma.

A Oklahoma State University podia não ser uma Harvard ou uma Yale, mas foi a oportunidade surgida e ele a agarrou, mostrando bravura e competência, pois o domínio da língua ainda era limitado e o curso, falado e escrito, seria integralmente em inglês. Talvez ali tenha sido onde o Lô mais foi posto à prova em toda sua vida. Em ao menos uma carta da época, ele deixa transparecer o esforço imenso que precisou fazer e o quanto aquilo o exauriu. Também pudera: ele encasquetou que só poderia tirar nota A, isto quando os professores eram muito rigorosos, especialmente seu orientador, figura a respeito de quem por muitos anos ouviríamos ele falar. Nessas ocasiões, dava para notar que ele falava com um misto de raiva e gratidão pelo mesmo. Chegava a dizer que o sujeito só poderia ser sádico, pois questionava até mesmo as vírgulas dos papers que ele, dando tudo de si, produzia. Mas aí na mesma hora seu semblante desanuviava, dando a ver seu orgulho e satisfação por ter ido, se virado e vencido, realizando seu sonho.

Por extensão do curso na Universidade Estadual de Oklahoma, durante três meses estudou também na Universidade da Flórida, em Gainesville. Para conclusão do mestrado, defendeu dissertação com o título Agricultural development, resource use and the settlement of new lands in Latin America – Policy issues (Desenvolvimento agrícola, alocação de recursos e assentamento de agricultores em novas terras da América Latina – Aspectos políticos). A premissa do trabalho foi a defesa da viabilidade econômica das áreas reformadas mediante a existência nelas de empresas agropecuárias asseguradoras e promotoras de todo um sistema integrado de produção (não só plantar e colher, mas também beneficiar e comercializar), e a proposta de uma política de melhor distribuição dos recursos provenientes dos programas internacionais de desenvolvimento. A dissertação foi aprovada e, em janeiro de 1976, foi-lhe outorgado o diploma de Master of Science in Agricultural Economics, com nota final 96,7.

Nos Estados Unidos, pilotando um carrão no melhor estilo americano, com a família a bordo, Lô também andou viajando e curtindo. Grand Canyon, Las Vegas, Disneylândia... Ao regressar a Brasília, o diploma ele guardou num baú em sua casa e, após passados muitos anos, teve um dia em que pensou em tirá-lo de lá e se apresentar numa faculdade ou universidade, propondo-se a dar aula. Contudo, foi só uma ideia passageira, não chegando a se tornar um projeto ou real desejo, de forma que ele deixou para lá.

DIRETOR DA SUDEPE, FESTEIRO EM SERRA NOVA, FAZENDEIRO...

De volta ao Brasil, o Lô, sem sair do Ministério da Agricultura, onde se reapresentara ao chegar, assumiria nova missão a partir de abril de 1976, agora no setor pesqueiro, como Diretor do Departamento de Aplicação de Incentivos, da Superintendência de Desenvolvimento da Pesca (Sudepe). Na época, de olho no grande potencial da faixa costeira do país, o governo estava empenhado em modernizar a atividade pesqueira, encontrando-se em implementação o III Plano Nacional de Desenvolvimento da Pesca (1975-1979), com metas ousadas de crescimento do setor, acima de 7% ao ano, e com diretrizes mais voltadas para o estímulo ao setor privado, mediante incentivos financeiros e fiscais. Precisamente neste “mediante incentivos financeiros e fiscais” é
que entrava o Lô, e já se defrontando com um grande desafio. Ocorria então o seguinte: embora os objetivos e as metas do plano já estivessem estabelecidos, faltava ainda definir os critérios de julgamento a adotar, ficando a análise e o acompanhamento dos projetos até então mais no âmbito jurídico do que técnico e econômico. Por isso, além dos trabalhos de coordenação de crédito e incentivos inerentes à área, também se exigiu dele todo um trabalho de sistematização e normatização dos parâmetros técnicos e financeiros da viabilidade econômica dos projetos pesqueiros, do controle e acompanhamento da sua implantação e da análise dos seus resultados. Permaneceu no referido cargo de diretor até 1978, vindo por um tempo ainda, mesmo quando já não estava mais na Sudepe, a manter-se vinculado ao setor pesqueiro, como representante do Ministério da Agricultura na Cocif (Comissão Coordenadora de Incentivos Fiscais) e no Grupo Permanente de Trabalho do Fiset (Fundo de Investimentos Setoriais/ Pesca), e como coordenador do Grupo de Trabalho Permanente de Coordenação de Crédito e Incentivos para o Setor Pesqueiro.

Luiz Fernando, terceiro e último filho, nasce em agosto de 1976. Em dezembro, quem chega para também morar naquela casa e compor a família, vinda de Porteirinha, é a Leila, filha de sua querida tia e madrinha Lia. Quando a Leila era ainda pré-adolescente, o Lô havia prometido levá-la para Brasília para melhores oportunidades de vida, e agora, estando ela com dezoito anos e o 1° grau concluído, era chegado o momento. Desde logo, o Lô passaria a reconhecê-la como sua “filha mais velha”, estabelecendo-se entre os dois, ou melhor, entre todos uma relação de grande e duradouro afeto, vindo a Leila a se tornar uma irmã dos irmãos Patrocínio. E, antes que fosse passado um ano, o Lô “assinaria” outro grande feito envolvendo toda a família.

Apegado à mãe mas nem por isso menos filho do pai, Lô sabia por experiência própria que Seu Dário tinha uma mística e uma paixão. Nas palavras do próprio Lô: “A maior paixão de meu pai era poder estar presente, ao lado da sua querida mãe – Dona Dadinha –, nas festas da padroeira de Serra Nova, onde participava com grande destaque. Sempre se deliciava com a presença de seus filhos e esposa naquele distrito”.2 Porém, desde seu falecimento em 1969 nada daquilo era mais verdade. Por seu lado o Tuca, o primogênito nascido em Rio Pardo e o filho que mais tempo e mais de perto tinha convivido com o pai, e que por isso, naturalmente, poderia ter dado continuidade àquela tradição, também havia morrido. Já quanto ao Carlinhos, segundo mais velho, ele, desde que se formara médico, tinha ido para bem longe, Araguaína, uma “fronteira avançada” no que era então norte de Goiás, atual Tocantins, onde vivia bastante ocupado, já que por ali havia bem poucos médicos, enquanto sobravam pacientes, muitos em situação de emergência. Foi então que o terceiro mais velho, apesar de ele também ser muito ocupado, tomou a si o desafio de articular, organizar e dirigir a Festa de Nossa Senhora do Patrocínio de Serra Nova, festa que, diga-se, se estende por uma semana inteira, culminando no dia 15 de agosto.

Tudo ocorreu como o mano Beto relata no livro Histórias de

Serra Nova:

Na certeza de que pai continuaria marcando presença ativa na festa da Padroeira se não houvesse falecido, Lourival, mesmo morando em Brasília (DF), tomou a si o encargo de promover a festa de 1977. Faria assim as vezes dele, suprindo a sua ausência, ao tempo em que lhe rendendo amorosa e leal homenagem. Tendo a Dirce, sua esposa, e a Tia Lia, sua madrinha, ao lado o tempo todo, ajudando-o com extrema
dedicação, conforme ele faz questão de ressaltar, o apaixonado irmão se revelou um dos festeiros mais bem-sucedidos que Serra Nova já viu. Simplesmente fez valer a sua marca registrada: programação completa lastreada na prodigalidade e respaldada por logística irrepreensível. Sob seu império, a festividade seguiu à risca a boa tradição. Teve leilões, alvoradas, foguetório, missas, batizados, casamentos. Teve desfile de biscoitos divinos que não paravam de sair de fornos a lenha capitaneados por biscoiteiras fabulosas, sendo servidos com cafezinho quente e bom. Teve passeios pelos arredores [...].

[...]

Em suma, mais marcante e gratificante seria impossível. Sentimo-nos orgulhosos e engrandecidos em honrar a memória do nosso pai, pagando aquele mais que devido tributo a sua santa padroeira, a seu berço natal e sem dúvida nenhuma que também a nós mesmos, já que a Silveirada é um povo festeiro. Isso tudo graças principalmente ao mano Lourival, conforme é de justiça reconhecer.3

Realmente, o sucesso da festa deu o que falar porque, de forma organizada e participativa com os familiares e a população local, o Lô conseguiu aliar a religiosidade à cultura e a diversão ao sentimento fraterno. Inclusive, ele deixou o Gugu, seu filho mais novo, sem batizar por quase um ano para que o batizado ocorresse na festa da qual ele seria o festeiro, sob as bênçãos de Nossa Senhora do Patrocínio, a madrinha dos filhos de Dário Silveira.

Vale registrar num parêntese que depois daquela inesquecível festa o mundo daria muitas voltas até que o festeiro voltasse a ser um filho de Dário, a façanha dessa feita cabendo ao Zezinho, que em 2010 não deixou passar em branco o ano do centenário de nascimento do pai. Sob a sua batuta, numa Serra Nova agora mais crescida e desenvolvida e onde a tradicional festividade religiosa se encontrava desvirtuada, estando mais para a bebedeira e a balbúrdia de automóveis com potentes caixas de som ligadas no mais alto volume, a Festa da Padroeira não só recuperou sua aura de religiosidade, como alcançou grande participação e envolvimento da comunidade, de que resultou a edição do livro que venho citando, o qual foi escrito a muitas mãos, estas tanto de professores e alunos da escola local, como de membros
da extensa família Silveira, que voltava a se reencontrar após décadas. Foi interessante também porque o reavivamento do vínculo dos irmãos Patrocínio com o torrão ancestral motivou a instalação pelos mesmos de um busto de bronze do pai ao lado da igreja onde Nossa Senhora do Patrocínio é louvada, ensejando também que uma bisneta de Dário, nascida em abril daquele ano, recebesse “Patrocínio” em seu
sobrenome.


Lô, Dirce e filhos (jun. 2011)

Por anos sonhando virar fazendeiro, mas sem dinheiro sobrando, Lô precisou passar um bom tempo procurando ao redor de Brasília até encontrar, em agosto de 1979, uma propriedade à venda que coubesse em seu orçamento. Localizada numa região de relevo ondulado no município de Planaltina de Goiás e distante cerca de oitenta quilômetros de Brasília, a Fazenda Coqueiro, a bem da verdade, estava ainda quase toda por se fazer na extensão de seus quarenta alqueires. De benfeitoria, com tudo já velho e gasto, possuía apenas um cercado que servia de curral, cerca de arame farpado separando uns dois pastos e uma casa de adobe, onde o caseiro morava com a família. A terra era flagrantemente fraca. Um morro alto, um riacho e uma nesga de mata à beira do mesmo garantiam ali refrigério para a alma, beleza natural e diversão, esta por conta principalmente de uma pequena cachoeira e seu poço. Para o sonhador, não precisava mais que isso.

Como passava a semana ocupado em Brasília, ele foi formando-a aos poucos. Se no início tudo era só despesa, dali a pouco o caseiro estava tirando leite das vaquinhas compradas e fazendo queijo, que o Lô tratava de vender em seu trabalho. O queijo era pouco, idem o quanto se auferia com sua venda, mas já ajudava a pagar o salário do caseiro. Dali mais um pouco, em parceria com o mano Tião, foi a vez de tentar a suinocultura, adotando-se uma raça, landrace, até então desconhecida na região. A começar pela construção da pocilga, em regime de mutirão de camaradas bons de copo, não faltando quem se acidentasse com uma alebanca de puro ferro caindo-lhe na cabeça, a trabalheira foi grande – há quem diga que a diversão também –, mas, como tudo era feito amadoramente, como no caso dos queijos, o retorno financeiro foi pífio. Segundo o Tião, a lida era mais intensa que o lucro, pois trabalheira geral era saciar os leitões sempre famintos e manter os boxes limpos.

Nesta experiência, segundo acredito, o desejo mineiro de se ter um leitãozinho à mão, para assá-lo na hora da vontade e degustá lo com uma pinguinha, falava mais alto que qualquer intenção de lucro. E mesmo ali, onde só se tinha a casa do caseiro e a pocilga, não faltaram festas animadíssimas e divertidíssimas. Numa até houve pau de sebo com uma nota de mil cruzeiros presa ao topo, num tempo em que a nota com a efígie do Barão do Rio Branco era famosa e valia um bom dinheiro. Na maior das algazarras, todo mundo tentou escalar o pau, porém somente o Valdemar, um trabalhador rural que de vez em quando fazia capina na fazenda, conseguiu alcançar o topo e pegar o dinheiro. A proeza lhe valeu um apelido que não seria mais esquecido:
Barão. Nas festas, os convidados que vinham de Brasília passavam a noite em barracas que cada qual trazia. Não foi senão no outro lado da fazenda, de frente para a mata e próximo à cachoeira e à estrada, onde o Lô construiu a sede, o curral e uma nova casa de caseiro. Para não gastar mais que o necessário, fez a casa da sede em estilo rústico-campestre, com paredes de tijolo aparente, um bonito telhado com madeirame de primeira e duas varandas, a da frente mirando o pomar e a do lado contemplando a mata. Na formação do pomar, deu preferência às frutas lá das Minas
Gerais, como jabuticaba, manga-ubá, pitomba, cajá-manga, banana, etc., a cornucópia se completando com frutas nativas do cerrado, como a mangaba (um suco inacreditável de gostoso), o araticum (ele adorava), a cagaita, sem falar no pequi, o qual, embora fraquinho em comparação ao de Montes Claros, servia de alento aos saudosos do mesmo. Lô fez também um jardim ao redor da casa, do qual gostava muito e o qual ele foi ampliando ao longo dos anos e por ele se apaixonando cada vez mais. A principal atividade econômica da fazenda foi sempre a pecuária de corte, principiando com poucas cabeças e chegando a ter, no melhor momento, após passados muitos anos, em torno de cem. Como fazendeiro, Lô foi autodidata. E quem
aprendeu com ele, tornando-se depois engenheiro agrônomo pósgraduado, foi o Gugu.

Bendita Fazenda Coqueiro! Para nós familiares, ela foi uma bênção pelo muito que nos proporcionava: lazer, curtição, convivência familiar, comemorações festivas, trabalho, passeios pelos arredores, banhos de cachoeira, sem falar que também generosas “feirinhas”, com o Lô nos prodigalizando com um pouco de tudo o que se produzia na fazenda, como frutas, mandioca, etc. Representou ademais uma oportunidade para a revelação e o exercício de talentos, caso, entre outros, da mana caçula Márcia, que produziu um quadro com frases criativas sobre a fazenda, a enfeitar ali a parede da sala, e que, junto com a Leila, sempre deu show como articuladora e animadora das festas que rolavam.

Para o Lô, que por um tempo andou com os ânimos exaltados e dificuldades de relacionamento, a fazenda significou muito mais ainda, como se uma tábua de salvação no mar da procela. Nos momentos de maior estresse, quando estava a ponto de explodir, era lá, às vezes já tarde da noite e após ter tomado uns goles, que ele ia,
sozinho, refrescar a cabeça. Era incrível que na manhã seguinte, no horário de sempre e com a cara boa, estivesse de volta ao trabalho em Brasília. O astral da fazenda, o cheiro do mato, a vista da mata e a visão do que ali já construíra e do que faltava fazer o devolviam a si e ainda o revigoravam. Admirável também era ver o aproveitamento integral que ele fazia de tudo o que aquela terra dava (o que escapava da voracidade das saúvas), frutinha madura nenhuma ele deixando perder, antes a convertendo em polpa. Era o instinto de economia da mãe a nele também prevalecer.

UM CURINGA NA CODEVASF

Por tudo o que concebeu, formulou e pôs em funcionamento, a década de 80 pode ser considerada o apogeu do Lô como servidor público.

Em 1979, atendendo a convite de Erasmo José de Almeida, seu amigo desde os tempos do Incra e agora Presidente da Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (atual Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Parnaíba), Lô se transferiu para a Codevasf, onde inicialmente atuaria como Assessor
Especial da Presidência, exercendo depois outros cargos e vindo a ser, naquilo que possivelmente foi, em toda sua carreira funcional, a menina de seus olhos, arquiteto e Diretor-Superintendente da Fundação São Francisco de Seguridade Social. Com atuação à época restrita ao “Velho Chico”, a Codevasf tinha como missão promover o desenvolvimento do vale são-franciscano utilizando os recursos hídricos com ênfase na irrigação. Empresa pública então ainda em fase de afirmação, a prioridade estabelecida era a execução de projetos públicos de irrigação em áreas selecionadas com a participação da iniciativa privada. Havia dez áreas-polos já definidas e o desafio era desenvolver nelas uma agricultura moderna conjugada à agroindústria, tendo como público beneficiário os pequenos produtores e os empresários.

Como Assessor Especial da Presidência, cargo que exerceu de maio de 1979 a maio 1986, Lô desempenhou múltiplas funções, que iam desde assistente técnico e conselheiro-mor do presidente a articulador e representante da Codevasf. Como a estrutura física e operacional a implantar nos projetos de irrigação era bastante onerosa, desafio maior do que comprovar a viabilidade econômica dos projetos era demonstrar a capacidade técnica da empresa de administrá-los e ganhar a confiança necessária para a captação de recursos externos complementares aos do Tesouro Nacional. Os principais financiadores eram o Banco Interamericano de Reconstrução e Desenvolvimento (Bird), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e a empresa estatal húngara Agrober Agroinvest. A cooperação técnica também era articulada com organismos internacionais, a exemplo do Instituto Interamericano de Cooperação, do Bureau of Reclamation e da FAO. Em face disso e de tudo mais, à Assessoria cabia exercer um papel que se voltava tanto para dentro como para fora da Codevasf. Para dentro, porquanto lhe cabia avaliar e fundamentar, para tomada
de decisão superior, o que chegava à Presidência vindo das diversas áreas da empresa, na forma de estudos técnicos, projetos, processos, relatórios, etc. E, para fora, porque era quem subsidiava as propostas objeto de negociação com os agentes e parceiros públicos, privados e financeiros. Aqui, não se pode esquecer o apoio logístico da Assessoria na elaboração de discursos e palestras a cargo dos dirigentes, e sua fundamental colaboração com o setor de comunicação social, sendo em geral de autoria do Lô os textos que se publicavam.

Lô desempenhou também importante papel ao alinhavar um projeto idealizado pelo presidente, que anteriormente tinha sido Superintendente da Sudepe, e por ele, com base no conhecimento que ambos traziam da Sudepe, que, adicionalmente à produção agrícola irrigada, visava dotar as áreas-polos de capacidade de produção de peixes. A ideia, portanto, em nome de um maior aproveitamento dos recursos hídricos disponíveis, era promover o desenvolvimento da pesca. Nasciam desse modo os projetos de piscicultura consorciada com a agricultura irrigada, os quais, mediante a implantação de Estações de Piscicultura, logo se tornariam uma realidade nas dez áreas-polos da Codevasf, quando até então tudo o que havia de parecido era a Estação de Hidrobiologia e Piscicultura de Três Marias, responsável pela exploração do potencial piscícola do lago formado pela represa de mesmo nome. Para a implantação das referidas estações, foi necessário firmar um acordo de cooperação técnica com o governo da Hungria, com aquele país europeu, então considerado uma das vitrines do socialismo, se incumbindo do financiamento, transferência de tecnologia e assistência técnica. A Codevasf precisou também contratar Engenheiros de Pesca, que passaram a compor o seu quadro de funcionários. Do lado húngaro, a execução do acordo esteve a cargo da Agrober Agroinvest. Especializada em reprodução artificial de espécies aquáticas, a Agrober tanto levou pessoal especializado para treinamentos intensivos nos principais centros de piscicultura da Hungria, como manteve consultores húngaros nas estações para implantação, orientação e acompanhamento do sistema operacional e do cultivo piscícola. Lô, um dos gestores do acordo, esteve na Hungria mais de uma vez.

Nesse meio tempo, valendo-se do prestígio e confiança alcançados na Codevasf, o Lô sempre que possível dava um jeito de favorecer seu estimado Norte de Minas, revelando-se uma espécie de “embaixador” do mesmo dentro da instituição. Gestões em prol da reabilitação e expansão de áreas em projetos de irrigação vitais para a região, a exemplo do Projeto Jaíba e do Projeto Jequitaí. Intercessão para que pessoas trabalhadoras da terra tivessem acesso a cargos e a empregos nos projetos de irrigação e mesmo na Codevasf. O Lô sempre foi uma pessoa muito leal a suas origens e raízes, sem nunca deixar de ser criterioso. A Dona Edite, que nunca esqueceu a resposta plena de sentido que o filho lhe dera quando ainda sequer balbuciava, costumava dizer que ele era “sistemático”.

Ainda como Assessor Especial da Presidência, Lô foi por um ano Chefe de Gabinete. Se com o novo cargo sua responsabilidade aumentava, o trabalho pouco ou nada diferia do que ele já fazia, cumprindo ao Gabinete processar e traduzir em pareceres, exposições de motivos, proposições, expedientes administrativos, etc., toda a complexidade de projetos, processos, relatórios, instrumentos de avaliação e controle gerados pelas áreas técnica, administrativa e financeira da empresa. Os requisitos necessários para dar conta a tempo e a hora das complexas tarefas cometidas ao Gabinete, seu eficiente chefe os reunia em si: conhecimento polivalente, capacidade
técnica, escrita célere e ágil, perspicácia para filtrar o essencial do acessório e o útil do supérfluo.

Em 1985, contando com o apoio de seus superiores, Lô passou a se dedicar a um projeto que redundaria em substantivo benefício para a totalidade dos funcionários da Codevasf. A incumbência era fazer acontecer o que até então existia apenas no papel: um fundo de pensão corporativo. Sendo o pessoal da Codevasf celetista, e não estatutário, tudo a que tinham direito ao se aposentarem era a remuneração da Previdência Oficial. O fundo vindo a se concretizar, passariam a contar também com uma aposentadoria complementar. Por ser o projeto dos mais generosos, o Lô estava especialmente empolgado.

O xis da questão era fundamentar e defender os meios de aporte de recursos financeiros por parte da Codevasf e dos funcionários para constituição do fundo. A entidade que administraria seria a Fundação São Francisco de Seguridade Social que, embora já instituída e autorizada, ainda não saíra do papel por falta do fundo inicial previsto em lei. Esforços foram envidados no sentido de dar forma e comprovar a viabilidade operacional e econômica da instituição para a canalização desses recursos financeiros, o que foi alcançado para alegria de todos os empregados.

Em fevereiro de 1986, a São Francisco iniciava suas atividades sob a gestão do próprio Lô na condição de seu Diretor-Superintendente. Classificada como entidade fechada de previdência privada e tendo como patrocinadora a Codevasf, a São Francisco tinha total autonomia administrativa, por isso era necessário formar o seu quadro funcional próprio, elaborar o seu estatuto e regulamentos e fazer operar sua estrutura administrativa e financeira. Para se apresentar ao seu público-beneficiário e ganhar a credibilidade e confiança, foram realizados trabalhos intensos de divulgação junto aos empregados e, já em março, começaram a ocorrer as primeiras inscrições de participantes fundadores do Plano de Benefícios de Suplementação de Aposentadoria. Responsabilidade tamanha essa de assumir e representar a São Francisco ativa, passiva, judicial e extrajudicialmente; movimentar os seus valores e deles gerar a rentabilidade do capital que era a sua matéria-prima, o seu negócio e o seu produto final! Além de experiência e capacidade técnica e administrativa, o novo cargo exigia do Lô conhecimento do mercado financeiro, estratégia de negócios e gestão de benefícios, entre outros. E a entidade, nascitura, precisava dar os seus primeiros passos, ganhar nome e se estabelecer. Mas ele arregaçou as mangas e, contando com a colaboração de colegas defensores da causa, se entregou de corpo e alma ao novo desafio.


Dona Edite e filhos (irmãos Patrocínio) comemorando o Natal (Moc, 1987)

Administrou a fundação durante seis anos, entregando-a consolidada ao seu sucessor em abril de 1992, mas então não se desvinculando dela ainda, já que pelos três anos seguintes seria Presidente do seu Conselho de Curadores, tempo durante o qual pôde ter a certeza de que o êxito que alcançara fora cabal e sem volta atrás. Não à toa, portanto, a Fundação São Francisco de Seguridade Social pode ser considerada seu maior desafio e triunfo profissional. Em maio de 2018, sua população segurada era de cerca de quatro mil e oitocentas pessoas, entre participantes ativos, assistidos e dependentes. E nós beneficiários assistidos, categoria na qual eu me incluo, estamos sempre a reconhecer que na verdade é ela que nos mantém como aposentados e assegura nossa qualidade de vida.

Após ter deixado de ser o executivo da FSF, Lô permaneceu na Codevasf por mais quatro anos, exercendo cargos nas áreas técnica e administrativa: foi Assessor do Diretor da Área de Produção e Chefe da Divisão de Sistemas e Métodos. Nas duas décadas que passou na empresa, foi na verdade muito mais do que o descrito até aqui, pois, paralelamente às missões e funções mencionadas, presidiu, integrou e assessorou diversos grupos de trabalho, comissões e estudos técnicos sobre temas variados. Para dar um exemplo, por designação do Ministro da Integração Regional, nos termos do artigo 5º da Lei 8.878/94 e do Decreto 1.153/94, presidiu na Codevasf a Subcomissão Setorial de Anistia.

Em 1998, desencantado com os novos rumos do setor público e o apadrinhamento político posto em prática na empresa, Lô, aos cinquenta e quatro anos de idade, novo ainda, optou por deixar o serviço público, valendo-se da possibilidade de aposentarse
proporcionalmente. Então, estava em vigência o PDV (Plano de Demissão Voluntária) deslanchado pelo governo Fernando Henrique Cardoso com o objetivo de reduzir a máquina administrativa federal, ao qual ele aderiu, desligando-se da Codevasf em 30 de dezembro de 1998. Foi, francamente se falando, uma despedida melancólica para quem foi sempre um valoroso e devotado combatente do serviço público. Contudo, o governo do Brasil não era mais nacionalista e desenvolvimentista como aquele em que ele se iniciara e fizera carreira no serviço público. Por seu turno, a Codevasf tinha deixado de ser aquela que tanto o prestigiava e à qual, em troca, ele muito foi capaz
de dar. Em resumo, para ele os bons tempos tinham se ido e ele não estava com muito jogo de cintura para se equilibrar na nova situação.

DOIS ANOS POR AÍ E DOIS NO SENADO

Por algum tempo, Lô respirou sua liberdade de aposentado. Entregou-se a sua fazenda, que requeria maior atenção do patrão, mas nela já rolava solidão, uma vez que os irmãos mais novos, que dela tanto usufruíram, haviam se espalhado por cantos diversos, a cuidarem das novas famílias constituídas. Já seus filhos, com um pé no mercado de trabalho ou cursando universidades, tinham outros interesses e afazeres que os faziam ausentes. Havia então que entremear a obrigação com o prazer, por isso volta e meia Lô dava suas escapadas para curtir sua saudosa Montes Claros, a lhe redespertar doces lembranças da infância e adolescência, com extensão às cidades dos Silveira: Porteirinha, Rio Pardo, Serra Nova. Naquelas paisagens, a falta da mãe querida que partira em junho de 1992 sempre apertava o coração, mas ele compensava a nostalgia com a alegria do encontro com a mana Dade, os tios, madrinha, primos e outros parentes que sempre venerou e que lhe manifestavam gratidão por tantas causas que ele abraçou.

Escapava pra’qui também, Aracaju, em busca de praia para desanuviar as ideias, e sempre esticava até o Rio São Francisco, especialmente ali na foz, para nos seus mergulhos, de preferência nu, como mais gostava, liberar os instintos reprimidos. Também, começou a namorar com mais emoção o norte do Tocantins, tendo como base Araguaína, onde vivem os manos Dó e Carlinhos. O Rio Araguaia, no qual sempre fazia acampamento com a família na temporada de férias em julho, o atraía bastante, pois ali, sim, se faziam verdadeiras pescarias. Em vez das traíras e lambaris da infância, o que fisgava eram enormes tucunarés, filhotes, fidalgos. E, para quem, sem
desmerecer o cerrado, se identificava com uma vegetação exuberante, tipo amazônica, não havia como não crescer o olho pelas terras de lá. E assim a semente de um novo projeto de vida começava a germinar...

Antes, porém, o tarimbado “assessor” teria ainda um papel a cumprir na máquina estatal, dessa feita, para variar, no Poder Legislativo. Em 2001, Lô foi convidado pelo mano Carlos Patrocínio, Senador pelo Tocantins, para compor sua equipe de assessoramento. Reeleito em 1994, Carlinhos estava no segundo mandato e precisava
de profissionais com conhecimento e vivência em economia, finanças, legislação agrária, agronegócio e assuntos correlatos para subsidiá-lo nas diversas demandas parlamentares.

Trazendo sua respeitável bagagem e experiência, Lô atuou no Senado Federal por dois anos. Sobre uma grande diversidade de assuntos, eram elaborados pareceres, emendas parlamentares, estudos e análises técnicas; os orçamentos apresentados para diversos fins requeriam avaliação e ajustes; os pronunciamentos e entrevistas do parlamentar também eram preparados ou subsidiados. Criado havia pouco tempo pela Constituição Federal de 1988, o Estado do Tocantins se encontrava em fase de afirmação e era causa de luta dos senadores que o representavam. Duas das bandeiras defendidas pelo Carlinhos eram: o retorno econômico ao Estado da energia gerada pelas usinas hidrelétricas existentes nos seus rios; a viabilização da Hidrovia do Rio Tocantins e outras, que necessitavam de eclusas nas represas para se tornarem plenamente navegáveis e desse modo se colocarem como um modal alternativo de transporte de cargas e escoamento da produção, modal esse mais ecológico e econômico do que o já saturado modal rodoviário. Sem falar que nas barragens as eclusas permitem a passagem de peixes a jusante e a montante. Até o final de janeiro de 2003, Lô deu a sua contribuição, pesquisando, levantando dados e realizando estudos para subsidiar emendas e proposições.


VOANDO EM OUTRA DIREÇÃO

Dando sua vida pública por encerrada, dessa vez em definitivo, Lô abraçou a sua causa própria de se afirmar no empreendedorismo rural. Era nas proximidades de Araguaína, dita “capital do boi gordo”, que estava o seu ideal de fazenda: terra farta, fértil e plana. Em maio de 2002, com o irmão Carlinhos, comprou em Wanderlândia (TO) uma propriedade de tamanho médio para exploração da pecuária de corte. Estimulou o filho Gugu, agrônomo recém-formado, a gerenciála e assumiu o papel de supervisor, pois não pretendia fazer morada permanente ali, até porque tinha a Fazenda Coqueiro a cuidar. Na medida do possível procurou os meios para viabilizar o negócio, mesmo sabendo que seria difícil alcançar a dimensão desejada. A cria, recria e engorda de gado requerem investimentos elevados, mas os recursos eram escassos e os financiamentos nem sempre acessíveis. A questão da regularização da terra, em grande parte de origem devoluta, também se mostrava complexa, não obstante os esforços empreendidos junto ao setor público.

Por um período de quatro anos, o filho permaneceu na área e foi mais fácil administrar. Mas este, tendo outros ideais de estudo e carreira profissional, quis retornar para Brasília, o que certamente gerou frustrações para o Lô. Também com o mano-parceiro houve entrevero, pois, sendo dois cabeças-duras, nem sempre conseguiam chegar a um denominador comum. Foi ficando só... Administrar à distância, por telefone, não era alvissareiro e, embora amasse a estrada e a enfrentasse com prazer, o percurso de mais de mil e trezentos quilômetros era muito longo e também arriscado. Tinha que ficar cá e lá. Ao tempo em que isso o aproximou mais do mano Dó, da cunhada Rita e sobrinhos, que ali residiam, tal situação o distanciou de sua família própria e isso o afetou, pois era extremamente familiar. Tinha dificuldade de viver sozinho, por isso tornou-se comum vê-lo passar horas atrás de uma garrafa de cerveja. Embora atencioso com a saúde, males da terceira idade já o rondavam, impondo-lhe restrições, a que ele não necessariamente se submetia, e padecimentos, como a tal “gota” (artrite gotosa).


Lô em sua fazenda em sociedade no Tocantins (maio 2012)

Houve apelos de todos para desapegar daquela paixão, mas ele não arredava pé, nem deixava de traçar projetos para aquela propriedade. Queria mesmo era comprar a outra quota-parte, regularizar seus registros cadastrais, empreendê-la e fazer dela uma fazenda-modelo. Ficou feliz em 2012 quando levou o cunhado-amigo Dalmo para visitá-la e fazê-lo sentir o que era terra em abundância; Dalmo, meu marido, também é pecuarista-sonhador, além de sofredor com as terras áridas do Nordeste. A verdade era que, ao mesmo tempo em que exigia dele um grande esforço, a fazenda no Tocantins era o que o acalentava com novas perspectivas de vida.

ENTRETANTO...

Na manhã cinzenta do dia 13 de junho de 2012, véspera de seu aniversário, estava o Lô na cozinha de sua casa em Brasília, organizando seu café da manhã para em seguida pegar a estrada, quando sentiu uma súbita perda de equilíbrio, que o forçou a apoiarse na cadeira para não desabar no chão. Foi encontrado contorcido e apenas balbuciava, sem condições de expressar o que sentia. Ao ser levado para o hospital, o diagnóstico: sofrera um AVC e seu lado esquerdo estava sem movimento.

Quanto infortúnio, meu Deus! Justo aquela doença que, sem anunciar, passa a rasteira, eletrocuta e, quando não mata, deixa sequelas irremediáveis?! Aquela doença, que nos anos 70, também numa manhã atroz, havia mutilado nossa mãe, voltando a infelicitar nossa família?! Ela, sim, é o protótipo da morte zombeteira, que com seu riso sarcástico fica a nos espionar da esquina, mal esperando a hora de dar o bote. E, entre tantos desiludidos do universo, veio atacar logo o Lô, que não obstante as desilusões mostrava paixão pela vida e estava a se preparar para uma nova temporada no Rio Araguaia, onde seriam comemorados os setenta anos do mano Carlinhos?! Ali, junto com ele, foi seu mundo por toda a vida livre, vasto, largo e tremendo que ruiu, sobrando-lhe apenas restos de fiapos do mesmo.

Por sorte o cérebro e a fala não foram afetados, permitindolhe comunicação normal. Com apoio de aparelhos na perna e braço direitos, ele poderia voltar a andar sozinho, chegaram a acreditar os médicos, a nós todos dando esperança. A família tudo fez para proporcionar-lhe conforto, movimentação e meios de recuperação: adaptações em recintos da casa, atendimento fisioterapêutico e fonoaudiológico em domicílio, acompanhamento psicológico (sua autoestima ficou baixa), hidroginástica, tratamento intensivo no Centro de Reabilitação Sarah Kubitschek, etc. Carinho, presença, afeto, acompanhante 24 horas.

Todavia, mesmo nada lhe faltando, a melhora era quase nenhuma. Estariam os médicos realmente certos ao afirmarem que com força de vontade ele seria capaz de se recuperar? Então, em reforço a seus esforços físicos e mentais, lhe faltava a obstinação, a determinação e a força de fé demonstradas por nossa mãe, que conseguira dar a volta por cima, recuperando seus movimentos em grande parte e resgatando sua autonomia? Difícil, senão estúpido, julgar...

O fato é que seus últimos anos de vida já não foram bem de vida, senão de purgatório. Uma luz no fim do túnel às vezes parecia que iria brilhar quando ele reagia, mostrando mais disposição, querendo sair, ver gente e resolver por conta própria suas questões. Porém, o recolhimento e a recusa de um ombro amigo eram os mais constantes. Não gostava de alento, porque lhe parecia manifestação de piedade. Não aceitava cobranças, porque ninguém parecia capaz de entender as severas, intransponíveis limitações infligidas pelo AVC. Dormir passou a ser a saída e a solução, por isso esperava com ansiedade os medicamentos que o deixavam dopado ou adormecido. Para nós seus familiares, era muito duro estar diante desse triste quadro e nos vermos impotentes, incapazes de fazer o que fosse para salvá-lo.

O ano de 2016 foi o mais sofrido. Abatido volta e meia por tosses secas e incômodas, identificadas como sintomas de pneumonia, precisava ser internado. Contudo, as internações eram de pouca valia, pois quando saía do hospital mostrava-se mais debilitado. Quando em junho estive com ele, saí do hospital e retornei de Brasília aos prantos, já que o pressentido foi de um adeus a qualquer instante.

Bravamente, no entanto, contra todos os diagnósticos, prognósticos e pressentimentos, ele ainda lutava e resistia e isso lhe dava uma sobrevida. Mas também porque, na sua longa e excruciante batalha, ele nunca, repita-se, esteve só ou desassistido, ao seu lado, carinhosa e expeditamente, estando sempre seus três filhos – Marquinho, Ludmila e Gugu –, a ponto de alguém chegar a comentar que eles eram “os melhores filhos que um pai enfermo pode ter”. Inclusive, uma das providências que tomaram foi instalar em casa um home care, buscando com isso proporcionar-lhe mais conforto e qualidade de vida, já que passar meses no ambiente nada aconchegante de um hospital, por melhor que possa ser ali o atendimento, é algo
que ninguém merece.

Novembro, todavia, foi inclemente, de novo sendo preciso voltar para o hospital. De onde não mais saiu, vindo a falecer no dia 22 de janeiro de 2017.

E assim partiu o nosso mano querido, sem dizer adeus a tantos que amou e serviu.

Difícil é expressar em palavras a dor sentida e a falta que ele nos faz.

O que nos resta é trazer sempre a sua presença para perto de nós, seja no resgate das suas doces lembranças, seja no cultivo das coisas boas que ele preconizou e amou.

É neste propósito, e por saber que ele amou a natureza com ternura, que em sua homenagem, num cantinho especial lá da Fazenda Ditinha (nome que homenageia nossa mãe), foi plantada a árvore que ele dizia não ter beleza igual: ipê roxo.

E ao lado da mesma, com a arte da mana Dade, está afixada uma placa que diz: “O que a memória amou fica eterno”.


Zélia e Dalmo plantando um ipê roxo em memória do Lô (Sergipe, jan. 2018)


Placa em homenagem ao Lô (Arte: Felicidade Patrocínio)

__________________
Cf. SILVEIRA, José Patrocínio; SILVEIRA, Roberto Patrocínio (Orgs.). Histórias de Serra
Nova – Centenário de nascimento de Dário Dias Silveira. Montes Claros: Ed. Cotrim Ltda.,
2010. p. 110-112.
Ibidem, p. 110.
Ibidem, p. 97-98.


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